CRÍTICA
REPRODUÇÃO/TV GLOBO
Juliana Paes como Maria da Paz em cena de A Dona do Pedaço; novela termina com tramas e personagens fracos
HENRIQUE HADDEFINIR
Publicado em 22/11/2019 - 5h11
Tramas duvidosas e personagens incoerentes já se tornaram comuns na faixa das nove da Globo, assim como o nome de Walcyr Carrasco já foi sinônimo de boas comédias, nos tempos de O Cravo e a Rosa (2000) e Chocolate com Pimenta (2003). Os roteiros rurais ingênuos e despretensiosos eram um sucesso. A ida do autor para o horário nobre produziu um novo tipo de reconhecimento: ele até consegue audiência, mas sua qualidade foi perdida há muito tempo.
Afoita, A Dona do Pedaço se desenvolveu aos trancos e barrancos, a começar pelo enredo capenga sobre matadores e a espécie de campanha armamentista feita em pleno horário nobre. Depois, avançou repetindo erros de escalação já típicos das 21h: duas crianças se transformaram em Paolla Oliveira e Nathalia Dill, mas Juliana Paes continuou a mesma. Fernanda Montenegro saiu de cena promovendo chacinas, enquanto todos só estavam preocupados com eloquência.
Uma olhadinha na lista de novelas das nove desde 2012 sublinha alguns títulos "de sucesso" segundo o principal critério da emissora: a audiência. Avenida Brasil (2012) --no ar no Vale a Pena Ver de Novo-- foi a primeira novela daquele ano e um exemplo cabal da união entre números e boas críticas. João Emanuel Carneiro sabia como escrever uma trama popular sem subestimar seu público.
Logo depois de Avenida Brasil, veio a primeira bomba: Salve Jorge (2012). Gloria Perez acreditava que, em nome da emoção, ninguém cobraria coerência, e foi massacrada nas redes sociais por conta dos desatinos de sua história. Veio, então, Amor à Vida (2013), a primeira investida de Carrasco no horário mais nobre. Sua linguagem didática (e pobre) conseguiu o que ninguém previa: um fenômeno.
Se de um lado os críticos rejeitavam a mediocridade do novo estilo do autor, do outro os números estabeleciam o escudo derradeiro. Amor à Vida era segura para a emissora, algo que só ganhou mais força nos anos posteriores.
O bloco de novelas seguintes revelava a instabilidade do horário nobre: Em Família (2014), Império (2014), Babilônia (2015), A Regra do Jogo (2015), Velho Chico (2016), A Lei do Amor (2016), A Força do Querer (2017)... Em poucas delas ocorreu um entendimento entre qualidade e audiência. Só A Força do Querer promoveu uma convergência entre público e técnica. E Em Família e A Lei do Amor conseguiram unir a falta de texto com a fuga de espectadores.
Em 2017, veio O Outro Lado do Paraíso, e mais uma vez Carrasco provou seu ponto: o público quer histórias dinâmicas e diretas, não importa o quão estúpidas elas pareçam. Os fracassos de Segundo Sol (2018) e O Sétimo Guardião (2018) também serviram para consagrar Carrasco como o verdadeiro dono do pedaço. A Globo adiantou sua próxima novela, entregando-lhe o posto de soberano do horário nobre.
E aconteceu de novo. A Dona do Pedaço se despede das 21h com ótimo desempenho, uma prévia de que, provavelmente, Walcyr logo estará de volta com outra galinha dos ovos de ouro. Mais uma história "inspirada" em outros folhetins e séries, com um número absurdo de personagens inúteis e com mais merchandisings do que qualquer outra novela da história. Lucros e mais lucros, acima de tudo.
REPRODUÇÃO/TV globo
Rock (Caio Castro) virou garoto-propaganda das Casas Bahia na novela e nos comerciais dela
A questão é sempre a mesma: "Se é tão ruim, por que tanta gente vê?". As novelas do autor privilegiam os fatos, mais do que as jornadas que levam até eles.
O problema é que a televisão mundial passa por um momento em que o personagem e a referência são tão valiosos quanto a história. Walcyr vai contra essa correnteza: tenta acessar os códigos folhetinescos clássicos, muito objetivamente, e busca passar a informação do jeito mais didático, sem que o espectador precise pensar.
É claro que a fórmula funciona, tanto que Silvio de Abreu --diretor de Dramaturgia da emissora-- adotou o método e passou a exigi-lo. Manuela Dias, autora de Amor de Mãe, foi obrigada a deixar sua história "mais acessível" para o público.
O que acontece é que, enquanto autores como Rosane Svartman e Paulo Halm (no ar com Bom Sucesso) tomam a decisão de movimentar sua história sem perder de vista a coerência do desenvolvimento, Carrasco prefere manobrar seus personagens e suas situações pensando no resultado final em curto prazo, sem que o desenvolvimento tenha de preencher certas lacunas.
A lógica é peculiar: ele oferece trabalho a grandes veteranos, como Betty Faria e Marco Nanini, mas não se preocupa com a qualidade do núcleo onde os insere. Chama uma atriz trans para o elenco, mas faz de Britney uma personagem de esquetes que poderiam estar em programas como A Praça É Nossa ou Zorra Total. Foi a mesma coisa com Juliana Caldas, a atriz anã de O Outro Lado do Paraíso, chegando até a colocar o mesmo ator para fazer o par romântico das duas.
reprodução/instagram
Vivi Guedes (Paolla Oliveira), sucesso como influenciadora digital, fez diversas propagandas
Juliana Paes se salva em meio aos destroços, tamanha atriz que é. Agatha Moreira vive a cilada chamada Josiane, mas com empenho. Paolla Oliveira enriquece os cofres, mas Vivi Guedes é somente uma moeda valiosa para a produção. A Kim de Monica Iozzi espreme com esforço um discurso empoderado válido, mas a homossexualidade de Agno (Malvino Salvador), por exemplo, só provoca desserviços com suas bases oportunistas e heteronormativas.
A história da mulher simples, desprezada pela filha, que alcança o sucesso vendendo comida não é nenhuma novidade no horário nobre, mas o público está sempre ávido por mais enredos de superação. Eles são a base da nossa teledramaturgia.
Contudo, nesse novo mundo em que o detalhe e o não dito ganham prêmios e estampam plataformas de streamings, não vai demorar para que o público comece a se sentir insultado quando um autor lhe disser "engula o mal feito porque é disso que você gosta". O "bolo" de Walcyr ainda vende. Mas até quando?
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