ANÁLISE
REPRODUÇÃO/PRIME VIDEO
Cassandra (Liniker) e Gersinho (Gustavo Coelho) em cena da série Manhãs de Setembro
A série Manhãs de Setembro, com sua temática e personagens repletos de liberdade no Prime Video, reforça a sensação de que as novelas brasileiras ainda estão aprisionadas em um passado do qual deveriam se envergonhar de tratar como seu presente.
Até pouco tempo atrás, a Globo censurava sem dó nem piedade beijos entre personagens do mesmo sexo em suas novelas. Isso para não falar da Record, em que este tipo de temática sequer costuma aparecer.
Alguns autores até tentaram escrever a cena do chamado "beijo gay", mas logo foram cortados pelos executivos em prol de uma moral preconceituosa com a diversidade. Tal tipo de comportamento sempre soou ridículo, sobretudo para os jovens. Afinal, o Brasil é o país que faz a maior Parada do Orgulho LGBTQ+ do mundo, e beijos desta comunidade são fartos.
reprodução/sbt
Luciana Vendramini e Giselle Tigre
Não custa lembrar também que, quando resolveu colocar personagens trans em seus folhetins, a Globo escolheu atores cisgêneros para interpretá-los, o chamado "trans fake".
Ou, quando escalou uma atriz trans para sua novela das 21h, no caso, Nany People em O Sétimo Guardião, ela era chamada por um nome masculino durante toda a trama, uma grande ofensa para a comunidade retratada. Até parecia maldade.
Tudo isso frustrou de forma irreparável a visão das novas gerações sobre as novelas da Globo e, sobretudo, a comunidade LGBTQ+, que enxergou na maior produtora de conteúdo audiovisual do país a reprodução de um pensamento tacanho, que não acolhia as minorias nem as humanizava em suas tramas, criando novos imaginários para estas figuras.
O mais irônico nessa história é que foi o SBT, geralmente mais conservador do que a Globo, quem veiculou na TV aberta o primeiro beijo homossexual, dado pelas atrizes Luciana Vendramini e Giselle Tigre, como as personagens Marina e Marcela, na novela Amor e Revolução, de Tiago Santiago, em 2011. O nome do folhetim não poderia ser outro.
É por atrasos na abordagem da temática LGBTQ+ com dignidade, respeito e, sobretudo, humanização de seus personagens, que a Globo e as outras emissoras da TV aberta perdem feio quando vemos uma série como Manhãs de Setembro, do Prime Video.
De cara, a superprodução audiovisual original e nacional é protagonizada por uma personagem trans e negra: a motogirl Cassandra, defendida com suavidade pela cantora e atriz Liniker --nome que quebrou tabus no meio artístico com sua transição e que impôs novos parâmetros de respeito público e midiático à diversidade sexual e de gênero.
De forma cuidadosa, a série humaniza sua protagonista e todo o seu entorno, composto de pessoas pobres que batalham a vida no cotidiano de uma cidade grande, em sua maioria pessoas negras.
Saem de cena os dramas típicos de dondocas brancas e ricas das novelas globais, e entra no quadro uma realidade bem mais próxima do brasileiro, a de pessoas comuns, que são tragadas pela metrópole cosmopolita.
Outro acerto da série é despadronizar a fala dos personagens, com atores de sotaques variados, inclusive estrangeiros, o que deixa a série com o ar cosmopolita que é a cara de São Paulo, cidade feita por brasileiros de todo país e estrangeiros de todo o mundo que logo se tornam paulistanos.
Com apenas cinco episódios de cerca de 30 minutos nesta primeira temporada, a história de Cassandra parte da excelente ideia original de Miguel de Almeida e é escrita com sensibilidade pelos roteiristas Alice Marcone, Marcelo Montenegro, Josefina Trotta e Carla Meirelles.
Sob direção de Luis Pinheiro e Dainara Toffoli, com produção de Andrea Barata Ribeiro e Bel Berlinck, da O2 Filmes, a obra recupera para o imaginário nacional a importância da cantora Vanusa (1947-2020), que morreu em um asilo de Santos aos 73 anos, neste país ingrato com seus artistas.
reprodução/prime video
Liniker vive uma motogirl na série
Liniker defende muito bem sua personagem, representando toda uma geração que batalhou por um papel como este nas mãos de uma figura como a sua.
A motogirl de aplicativos de entrega está em crise de consciência permanente depois que descobre ter um filho, Gersinho, papel do excelente menino Gustavo Coelho, fruto de um relacionamento fugaz no passado com a espertalhona Leide, interpretada com a malícia carioca necessária por Karine Teles, já conhecida do público por sua atuação no filme Bacurau (2019).
O menino surge justo quando Cassandra consegue alugar sua primeira quitinete em busca da liberdade, o que torna seu conflito ainda maior. A personagem ainda é amparada pelo casal de vizinhos gays, interpretados com talento por Gero Camilo e Paulo Miklos, que ainda acompanha Cassandra em seus shows.
É também de Bacurau que vem outro nome da série, Thomas Aquino, que interpreta o garçom Ivaldo. Este tem um caso com a motogirl travesti ao mesmo tempo que mantém as aparências com a "família do comercial de margarina", como dizem as personagens trans da série em certo momento.
reprodução/prime video
Clodd Dias interpreta Roberta
Todo o núcleo principal de Manhãs de Setembro tem a cor e a cara do Brasil real, e não do Brasil embranquecido, padronizado e plastificado das novelas da Globo. Este é um dos trunfos da série. Afinal, representatividade importa.
E há representatividade trans de sobra na obra. É no núcleo em que Cassandra exercita seu lado artista, cantando músicas de Vanusa no palco, sua grande ídola e mentora com quem fala em pensamento, que isso fica evidente.
Grande potência que o teatro já conhecia e que agora é descoberta pelo streaming, Clodd Dias empresta seu carisma e segurança cênica à Roberta, dona da boate onde Cassandra faz seus shows e melhor amiga da protagonista.
reprodução/prime video
Divina Núbia e Danna Lisboa atuam na trama
Também dá gosto de ver aparições das atrizes e cantoras trans Danna Lisboa e Linn da Quebrada em cena, bem como de Divina Nubia, transformista lendária com histórico de interpretações eloquentes nas casas noturnas paulistanas e no extinto Show de Calouros de Silvio Santos.
Todas são artistas que esperaram décadas por uma oportunidade como esta que se oferece em Manhãs de Setembro, para apresentar seu talento ao grande público, mesmo que de forma rápida. Dá gosto de quero mais e vontade de ver suas personagens crescerem na segunda temporada.
O streaming, com sua liberdade de temáticas e de discursos e sua abordagem despida de preconceito para realidades antes pouco vistas na televisão, se sobressai junto ao público do futuro.
Se a TV aberta não correr atrás, vai ficar engessada em um passado triste, conservador, mesquinho e preconceituoso, falando apenas para gente com cabeça antiga e que não acompanhou a evolução dos tempos. Vai ficar ultrapassada.
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MIGUEL ARCANJO PRADO é jornalista pela UFMG, pós-graduado em Mídia, Informação e Cultura pela ECA-USP e mestre em Artes pela Unesp. É crítico da APCA, criador do Prêmio Arcanjo de Cultura e coordena a Extensão Cultural da SP Escola de Teatro. Passou por Globo, Abril, Folha, Record, Band e UOL. Clique para ver mais textos do Miguel e conheça também o Blog do Arcanjo
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