Menu
Pesquisar

Buscar

Facebook
X
Instagram
Youtube
TikTok

REVOLUÇÃO

Após protestos raciais nos EUA, séries policiais nunca mais serão as mesmas

Divulgação/NBC

Em uma calçada, Peter Scanavino detém à força Peterson Townsend, ambos ajoelhados em cena de Law & Order: SVU

De terno, Peter Scanavino ataca Peterson Townsend em Law & Order: SVU; abordagem policial repensada nas séries

JOÃO DA PAZ

Publicado em 15/6/2020 - 4h43

Truculência na abordagem. Ataques de raiva durante interrogatório. Negros suspeitos de crimes. Agente da lei branco tratado como herói. Essas são algumas das situações que vão perder espaço nas séries policiais norte-americanas. O gênero popular entra em uma nova era após a onda de protestos raciais que já dura três semanas nos Estados Unidos desde a morte de George Floyd, homem negro asfixiado por um policial branco.

As manifestações históricas, as maiores no país desde o assassinato do ativista Martin Luther King Jr. (1929-1968), provocam mudanças no debate político e social, impacto que reverbera em Hollywood. Por comentários racistas, atores estão perdendo o emprego. Programas de TV como Cops, sobre o trabalho real da polícia, foram cancelados. E as séries policiais estão na mira.

Gênero com as três séries mais vistas nos EUA na temporada 2019-2020 (NCIS, FBI e Blue Bloods), as tramas policiais não serão extintas, mas reinventadas. Por mais que seja por um bem maior, como prender um estuprador ou um serial killer, o policial branco que burla leis e fere a moral na captura de um bandido está com os dias contados. Ocasiões vistas com frequência em produções como Chicago P.D. e The Shield (2002-2008).

"As atrações que estão a perigo são as do policial justiceiro", comentou Warren Leight, showrunner de Law & Order: SVU, o maior ícone do gênero policial. A declaração ocorreu em um podcast da revista The Hollywood Reporter. "Eu me sinto desconfortável com séries policiais que usam a violência ou ameaça durante interrogações. Isso já era, acabou", disse Leight.

Ele fez referência a uma cena padrão das séries policiais. Aquela na qual o agente da lei esmurra a mesa, joga a cadeira e intimida o suspeito em busca de uma confissão ou informação. Os métodos para chegar ao ponto em que se deseja em um trabalho investigativo precisarão ser alternados. Isso porque as interações desse tipo transmitem uma mensagem equivocada para o telespectador.

Em um estudo detalhado, a organização Color of Change, ativa nos protestos raciais realizados em duas mil cidades americanas (segundo levantamento do jornal The New York Times), analisou 26 séries policiais que foram exibidas na temporada 2017-2018. O objetivo era entender como o policial era mostrado na tela em comparação com os negros, em sua maioria tratados como suspeitos de um crime.

Chamado de Injustiça Normalizada, o relatório apontou que as séries policiais priorizam o policial branco herói acima da lei, impune mesmo após cometer irregularidades no seu trabalho, pois capturou o criminoso. Em 64% dos casos, as pessoas negras estavam na lista de suspeitos. E predominou a mulher branca como vítima de um crime, a mocinha a ser salva.

A produção de Law & Order terá integrantes da Color of Change para tentar mudar esse quadro. Leight fez mudanças na sua equipe de roteiristas, tentativa de inserir uma nova narrativa nos episódios. Ele contratou quatro jornalistas para colaborarem na montagem dos episódios, um deles com vasta experiência na cobertura da rotina diária da população de bairros carentes de Nova York.

reprodução/Instagram

Aaron Rashaan Thomas nos bastidores de S.W.A.T.; único negro showrunner de série policial


Representação

Os protestos raciais nos EUA levantam a bandeira contra a violência policial que não apenas vitimiza os negros, mas também latinos e o que se entende por pessoas de cor (essencialmente, quem não é branco). O caso de Floyd não é isolado, apenas mais um entre tantos outros. Para que as séries retratem com mais veracidade e consciência o ponto de vista dessa população, é preciso contratar gente que faz parte desse extrato para que possam opinar diretamente.

Entre todas as séries policiais americanas, só uma tem um showrunner negro, profissional à frente de cada detalhe da atração, do roteiro a direção. Aaron Rahsaan Thomas é o dono desse cargo em S.W.A.T (Globo, Globoplay). Ele se posicionou sobre o futuro das séries policiais em um artigo escrito para a revista Vanity Fair.

Thomas, que na infância foi vizinho de uma criança de 12 anos alvo de uma bala disparada pelo revólver de um policial, admitiu "que é uma criatura rara em Hollywood: um homem negro que, em parte, fez carreira escrevendo roteiros para séries policiais". Até ele criar uma série própria, em parceria com Shawn Ryan, de The Shield. Thomas realçou que as mudanças anunciadas são bem-vindas.

"No final das contas, esses esforços para mudar a cara [das séries policiais] vão resultar em atrações melhores, tramas com mais nuances e, quem sabe, que possam influenciar como os policiais de verdade interagem com as comunidades locais", destacou Thomas.

Um norte

Presidente da Color of Change, Rashad Robinson se mostrou esperançoso ao falar para o jornal The Washington Post que é possível "projetar um cenário no qual os negros [na ficção e mundo real] possam experimentar segurança, felicidade, esperança e propósito" em vez do temor e da alta tensão, o que as séries policiais carimbam a cada episódio.

No relatório sobre os dramas policiais realizado pela sua organização, divulgado em janeiro, Robinson apontou um norte para o gênero, comparando com os dramas médicos, tão populares quanto os policiais.

"TV é ficção. Mas há diferentes tipos de ficções. Tem aquela do drama hospitalar, com médicos mergulhados em triângulos amorosos. E tem aquela em que um grupo de médicos trata como fato teorias conspiratórias antivacinas." Robinson, então, fez um paralelo com as séries policiais. "O problema com o crime e o gênero policial é que a última hipótese sempre prevalece: representações [da realidade] distorcidas, verdadeiramente perigosas e irresponsáveis."

reprodução/ABC

Protagonista de Grey's Anatomy, Meredith Grey (Ellen Pompeo) foi parar no xilindró por fraude

Símbolo maior das séries médicas, Grey's Anatomy puniu sua protagonista, Meredith Grey (Ellen Pompeo) com prisão e perda da licença após ela se envolver em uma fraude. Embora se passe em um hospital referência, Grey's não perde a oportunidade de debater questões mais próximas da realidade sobre o sistema de saúde americano, que não é para todos e que tem hospitais com inúmeras carências.

Dito isso, dá para conceber que o sargento Hank Voight (Jason Beghe) será um dia punido, de fato, por sua ficha corrida de violações graves em Chicago P.D.?

Mudanças em Blue Bloods, a série mais pró-polícia de todas, sobre uma família de agentes da lei, devem ser quase nulas, devido ao seu formato. Por sua vez, Law & Order: SVU tem a chance de liderar o movimento, levando em consideração o que já foi feito ao longo de mais de 20 anos no ar. Episódios do passado traziam coisas, como piadas sobre estupro na cadeia, que hoje são proibidas nos roteiros.

Fácil de fazer e de assistir, com um crime sendo apresentado, investigado e resolvido em uma hora, as séries policiais têm uma fórmula de ouro que não será abandonada. O que não será mais aceito é a filosofia dos fins justificarem os meios. O telespectador está de vigia e vai cobrar qualquer escorregão.

Mais lidas


Comentários

Política de comentários

Este espaço visa ampliar o debate sobre o assunto abordado na notícia, democrática e respeitosamente. Não são aceitos comentários anônimos nem que firam leis e princípios éticos e morais ou que promovam atividades ilícitas ou criminosas. Assim, comentários caluniosos, difamatórios, preconceituosos, ofensivos, agressivos, que usam palavras de baixo calão, incitam a violência, exprimam discurso de ódio ou contenham links são sumariamente deletados.