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EXTREMO ISENTO

Pantanal até vira onça, mas é 'tchutchuca do Centrão' ao falar de política

REPRODUÇÃO/TV GLOBO

A atriz Alanis Guillen segura uma espingarda caracterizada como Juma em cena de Pantanal

Juma (Alanis Guillen) em Pantanal; novela tem dificuldade em se posicionar politicamente

DANIEL FARAD

vilela@noticiasdatv.com

Publicado em 29/8/2022 - 6h50

Pantanal bate com vontade e com razão em Jair Bolsonaro, mas curiosamente poderia muito bem dividir com o presidente a alcunha de "tchutchuca do Centrão". A novela das nove da Globo age de uma forma bastante parecida com essa sólida instituição nacional pela capacidade fazer concessões tanto à parcela mais progressista dos telespectadores ao mesmo tempo que acena ao agronegócio. Trata-se de um discurso sobre tudo isso que está aí politicamente, mas sem identificar claramente sobre o que é favor --numa espécie de isenção eterna.

O folhetim de Bruno Luperi até deu indícios nos primeiros capítulos de que abordaria alguns temas de relevância social, como a reforma agrária a partir da família Marruá. A história até chegou a flertar com alguns temas que já foram abordados no universo de Benedito Ruy Barbosa como a teologia da Libertação, mas enveredou em seguida por um vazio político.

A trama teve medo de falar em política e principalmente dar nome aos bois ao trazer à tona questões como as queimadas no Pantanal. O Velho do Rio (Osmar Prado) teve olhos para os prejuízos ambientais, mas não para as mãos que colocaram fogo no bioma --sem menções diretas ao agro, do qual os próprios Leôncio fazem parte.

A novela tentou deixar esses receios de lado ao recuperar figuras que já estavam previstas nos roteiros originais, a exemplo de Ibraim (Dan Stulbach). O deputado foi lido pelo público como uma crítica a Bolsonaro, ainda que outras bordoadas mais diretas ao presidente tenham sido cortadas ao longo do remake.

O parlamentar, por outro lado, deu um tom ainda mais apolítico a Pantanal. Ele se tornou uma caricatura do poder, sempre em meio a conchavos ou costurando aliança. A atividade política é caracterizada como predatória por si, ainda que em qualquer democracia do mundo a governabilidade seja uma máxima.

Extremo centro

Pantanal obviamente está longe do espectro da extrema direita, ainda que tenha sido cooptada inicialmente por bolhas bolsonaristas nas redes sociais. As questões identitárias, hoje fundamentais para as esquerdas, estão cada vez mais presentes na trama --do feminismo em Maria Bruaca (Isabel Teixeira) ao gênero em Zaquieu (Silvero Pereira).

Esses assuntos, no entanto, também recebem atenção de parte das centro-direitas do mundo, até porque representam cada vez mais um consenso em democracias liberais razoavelmente estabelecidas.

Os temas até poderiam ser chamados de "espinhosos" dentro de um Brasil em que um terço da população considera votar novamente em um candidato de extrema direita para presidente. As discussões, no entanto, já são bastante inseridas dentro da televisão, especialmente quando se fala em dramaturgia.

O folhetim se arrisca, mas pisa em um terreno razoavelmente estável dentro de uma pauta de costumes. Ele, contudo, é muito mais conservador quando se fala em meio ambiente --a ponto de representar um descolamento com as obras anteriores de Ruy Barbosa.

Fim do mundo

As ideias de Jove (Jesuita Barbosa) para modernizar o sistema de produção nas fazendas de José Leôncio (Marcos Palmeira) são vendidas como a "salvação da lavoura", com o perdão do trocadilho. A questão é que esse idealismo tem a forma exata da propaganda de ESG (Governança Ambiental, Social e Corporativa, em inglês) de corporações ligadas ao agronegócio.

O fotógrafo se apropria de iniciativas como as agroflorestas como se fossem necessários apenas pequenos ajustes no sistema de produção agropecuário para evitar um colapso cada vez mais próximo. Ele fala como se não fosse esse próprio sistema, baseado na exploração de recursos acima do que o próprio planeta pode produzir ou recuperar, que levasse a esse Armagedom ambiental.

A própria figura do personagem de Jesuita Barbosa é contraditória ao tomar o protagonista na luta pela terra, já que ele representa muito mais um antagonista na vida real. Afinal, ele é o herdeiro de um império agropecuário que parece muito mais se mover por culpa ou por expiação do que necessariamente por idealismo.

A tônica dessa trama ambiental, na verdade, é de extremo conformismo. Um radicalismo até existe em lampejos em personagens como Miriam (Liza Dal Dala), que somem da história tão rápido quanto apareceram. De resto, o público assiste impassível a Jove "botar em ordem" o império da família --como se os próprios Leôncio, em si, não fossem um problema.

O estranho é que Pantanal vem do universo de Ruy Barbosa, que sempre tensionou a realidade com provocações sobre reforma agrária em Meu Pedacinho de Chão (1971) em plena Ditadura Militar (1964-1985).

Mais do que uma questão da adaptação de Luperi, trata-se também de uma tendência da própria ficção que começa a cada vez mais ver menos saídas para os problemas que aborda. Uma tendência que afeta não só novelas no Brasil, mas de séries em Hollywood a filmes do circuito independente na Europa.

Pantanal parece ser fruto de uma geração de seres humanos que perdeu a capacidade de sonhar com outro mundo possível, que levou a um apelo da escritora de ficção científica Ursula K Le Guin (1929-2018) ao vencer o National Book Prize em 2014:

Vivemos no capitalismo. O seu poder parece ser inevitável. Assim era o poder divino dos reis. Os seres humanos podem resistir a qualquer poder humano e mudá-lo. A resistência e a mudança, muitas vezes, começam na arte.

Escrita por Benedito Ruy Barbosa, a novela Pantanal foi exibida em 1990 pela extinta Manchete (1983-1999). O remake da Globo é adaptado por Bruno Luperi, neto do autor, e ficará no ar até outubro.

Em seguida, a Globo vai estrear Travessia, trama de autoria de Gloria Perez.


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