CONTADOR DE HISTÓRIAS
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Sergio Mamberti em cena no espetáculo Um Panorama Visto da Ponte, em 2018
Um bom contador de histórias. Esse era o perfil de Sergio Mamberti (1939-2021) na intimidade. Com uma vida dedicada à arte, ele tinha em seus contos personagens conhecidos do público brasileiro. Hebe Camargo (1929-2012) já foi sua cliente quando se aventurou como sacoleiro. José Wilker (1944-2014) foi salvo por ele quando não tinha um teto.
Todos esses causos foram narrados na biografia Sergio Mamberti: Senhor do Meu Tempo, lançada neste ano pela Edições Sesc. "Esse livro é de todos que conviveram uma vida comigo", disse, na ocasião. Não é à toa que a obra tem 400 páginas.
Em julho último, Mamberti concedeu uma entrevista ao Notícias da TV. Em mais de uma hora de bate-papo, relembrou desde a infância em Santos, litoral de São Paulo, ao início da vida de ator aos 15 anos. Ao lado de amigos adolescentes, fez uma despretensiosa apresentação de 20 minutos e saiu do palco certo de que havia encontrado sua vocação.
O ator devotou sua vida ao teatro, onde fez grandes amigos. Foi também onde viu colegas crescerem na carreira e ajudou muitos deles como pode. Antes de se tornar conhecido publicamente como o Eugênio de Vale Tudo (1988), na Globo, Mamberti já tinha uma longa lista de trabalhos nos palcos, no cinema e na televisão.
Nessa trajetória, cruzou com nomes como Wilker. Em seu livro --e para a reportagem-- contou que acolheu o amigo após ver que ele não tinha onde ficar no Rio de Janeiro. O colega estava dormindo na areia da praia.
Há também as memórias com Raul Cortez (1932-2006). Mamberti não poupava elogios ao amigo, mas também dizia claramente que era uma pessoa difícil. Em 1986, quando atuaram no espetáculo Drácula, os dois entraram em atrito. Cortez, que dava vida ao vampiro, se sentiu diminuído em cena pelo colega, que interpretava o caçador Van Helsing.
Para os amigos, o eterno doutor Victor, do Castelo Rá-Tim-Bum (1994-1997), gostava de contar suas histórias. Certa vez, se aventurou como sacoleiro. Nos anos 1960, viajou pela Europa e trouxe de lá tudo o que pôde para revender no Brasil. Foi a maneira que encontrou para não ficar no vermelho com os gastos da viagem. Sua melhor cliente era Hebe, que comprava tudo.
reprodução/edições sesc
Sergio Mamberti e Ed, seu parceiro
A família não escapava das invenções do artista. Nem sua mãe. Maria José Duarte Mamberti (1912-1982), grande inspiração para ele ter escrito sua biografia, atuou em um filme a pedido do filho. Ela fez uma participação em O Olho Mágico do Amor, de 1982. O enredo do longa era erótico, mas ela fez uma ponta bem rápida como uma compradora de cosméticos.
Por ter participado de uma produção que exaltava o desejo sexual, ela ganhou dos netos o apelido de "pornoavó". A história é motivo de gargalhadas até hoje entre os filhos de Mamberti e Vivian Mehr (1964-1980) --Eduardo, Carlos e Fabrício.
Em 1980, o ator enfrentou uma dura perda: a morte de sua mulher. De amigos e confidentes, os dois se tornaram um casal que era exemplo de amor com sinceridade, respeito e compreensão. O luto fez o intérprete padecer.
Ele buscou forças no trabalho. E foi justamente em uma viagem profissional que conheceu Ednaldo Torquato, que viria a ser seu parceiro durante 37 anos --ele morreu em 2019. Com ele, adotou Daniele, sua única filha mulher.
A Torquato, Mamberti declarou que deve a vida. Em 1988, o intérprete foi convidado pela atriz Yara Amaral (1936-1988) para curtir o Réveillon no Bateau Mouche, no Rio de Janeiro. Ele queria ir, mas Ed --como era chamado pela família-- não quis nem saber.
Naquela noite, a embarcação naufragou na costa brasileira. Uma tragédia que levou sua amiga Yara. Das 142 pessoas a bordo, 55 morreram no acidente. "O Ed me salvou", dizia ele sobre o episódio.
Mamberti morreu aos 82 anos em decorrência de falência múltipla de órgãos na madrugada de sexta-feira (3). Ele deixa um legado que serve de inspiração para a nova geração de atores. Em seus últimos dias de vida, além de lançar sua biografia, trabalhou com afinco em um longa-metragem e um documentário sobre sua carreira.
Seu principal desejo era voltar a dar vida ao doutor Victor, personagem que o consagrou na televisão. Ele estava a todo vapor na produção de uma série para a internet. Ele faria Tempos do Doutor Victor em parceria com a TV Cultura.
Ao Notícias da TV, Carlos Mamberti, filho do ator, resumiu a perda da família e da classe artística. "Não deu. Infelizmente, não deu. Agora é honrar a trajetória dele aqui", disse.
Leia abaixo trechos inéditos da entrevista de Sergio Mamberti ao Notícias da TV. No bate-papo, ele conta --entre risos-- suas histórias memoráveis com nomes como Hebe Camargo, José Wilker e Raul Cortez. Com vocês, um bom contador de histórias:
Notícias da TV - No seu livro tem vários momentos memoráveis. Você conta que sua casa era quase um albergue, pois você hospedou muitos nomes que hoje são conhecidos na televisão brasileira. Muita gente morou com você até mesmo em uma caminha do lado da escada, como José Wilker, é isso?
Sergio Mamberti - Isso (risos). Foi no Rio de Janeiro , na primeira vez que morei lá depois do meu casamento. José Wilker estava dormindo na praia. Coitadinho, não tinha onde ficar (risos). Falei: 'Olha, eu arrumo uma caminha para você e dá para colocar um armário lá. Você vem morar em casa'. Ele: 'Mas eu não tenho dinheiro para te pagar'. 'Ah, Zé, eu estou te convidando'. E ele veio. De madrugada, quando eu acordava para esquentar a mamadeira do Duda, a gente acabava batendo um papo.
O Zé foi um grande companheiro, um grande ator. Tenho muito orgulho de ter convivido com ele. Um grande talento. Depois, o Zé ficou poderoso, teve uma ascensão grande, e a gente se encontrava menos. A loucura que ele tinha por cinema, eu também tenho. Ver ele falando sobre cinema sempre foi um encanto. O Zé era um cara muito inteligente. A morte dele foi prematura. Morreu muito jovem.
Notícias da TV - Você também tem boas histórias com Raul Cortez. A melhor é quando vocês trabalharam juntos na peça Drácula, não?
Sergio Mamberti - (risos) Digo sempre que meu livro é de uma geração. Escrevo a partir das minhas memórias. Não é um livro meu. Esse livro é de todos que conviveram uma vida comigo durante 50 ou 60 anos [de profissão]. O Raul foi um desses protagonistas sensacionais. Raul tinha um temperamento muito exuberante e ele estava sempre em guerra (risos). Ele brigou tanto comigo em Drácula (risos). Falei: 'Não adianta, Raul. Não adianta que não vou ser dessas pessoas que fala 'foi meu amigo, mas agora não quer saber dele'. Você sempre será meu amigo'.
Acontece que eu fazia o Van Helsing, e o Drácula era um personagem absolutamente figurativo. A peça era do caçador de vampiros. Ele estava fazendo outro espetáculo e acho que não leu [a sinopse]. Como viu que ia fazer o Drácula falou: 'Pronto. Estou feito'. Quando ele viu que o Van Helsing morria de medo dele [do Drácula], mas sempre se livrava de uma forma astuta das coisas, das mandingas do Drácula... Então, o personagem dele virou comédia.
Ele falou: 'O Serginho está diminuindo a intensidade dramática do meu personagem porque virou uma comédia rasgada'. Falei: 'Você que não entendeu que essa versão é para rir'. Era uma comédia! 'Você entrou de gaiato'. Ele fez tanta reclamação para a produção que depois de quatro meses em cartaz --o espetáculo lotando-- acabou encerrando a temporada.
reprodução/edições sesc
Mamberti com Vivian (à esq.), os filhos e a sogra
Notícias da TV - Entre teatro e televisão, você também fez cinema. Sua mãe também fez cinema e ganhou um apelido curioso. Como é a história da pornovovó?
Sergio Mamberti - Foi (risos). Era um filme erótico, mas com uma história consistente e bacana. Aliás, o filme era muito bonitinho. Mamãe foi convidada pelos diretores, que frequentavam a minha casa, para fazer uma cliente da [personagem da] cantora Cida [Moreyra], que vendia cosméticos. [Na cena] Ela vendia cosméticos para mamãe. E mamãe acabou não indo assistir ao filme. Então, ela não sabia que a Tania Alves ficava pelada, ela era uma prostituta. Era o filme de estreia da Carla Camurati. A [personagem] da Carla descobre um furinho que o personagem ficava vendo a Tania transar com os homens. Cada hora era um.
Minhas tias foram ao cinema para ver o filme da minha mãe. No cinema, elas entraram falaram: 'Nossa, está tão estranha essa matinê. Só tem homem. Está esquisito. Não sei o que está acontecendo' (risos). Quando o filme começou, já começaram as aventuras eróticas da [personagem da] Tania Alves. E elas falaram entre elas: 'Meu Deus, a Maria fez um filme pornográfico (risos)'. E ficaram assustadas.
O problema maior delas era o seguinte: elas queriam ver a cena da minha mãe e saber o que minha mãe faria nessa cena. Então, elas não conseguiam sair do cinema. Ao mesmo tempo elas estavam com medo de sair do cinema e encontrar aquela homarada toda que frequenta filme erótico (risos).
Elas: 'O filme não acaba. A Maria não entra'. Até que minha mãe entrou. Elas falaram: 'Até que é uma cena simples, que ela comprava cosméticos'. Elas telefonaram para minha mãe: 'Maria, você já foi ver seu filme?'. Mamãe nunca viu o filme, porque ela morreu logo depois. 'Não, ainda não tive tempo de ver'. 'Maria, você fez um filme pornográfico!'. 'Eu fiz um filme pornográfico? Sergio, você não me avisou que o filme era pornográfico'. Falei que não era pornográfico, era erótico. Os meninos riam. E toda hora chamavam a minha mãe de pornoavó (risos). Foi a última imagem que ela deixou para os netos, que ela era uma pornoavó (risos).
Notícias da TV - No seu livro, você conta que, certa vez, uma viagem para a Europa terminou de um jeito inusitado. Você voltou com uma mala cheia de coisas para vender. Vendeu roupa até para a Hebe Camargo, é isso?
Sergio Mamberti - Isso. Eu trazia coisas de Londres. Tapeçarias do Oriente e tudo. A Hebe era uma grande amiga. Nós tínhamos feito uma novela. Eu chegava lá [na casa dela], abria minha sacola de sacoleiro (risos). A Hebe: 'Ai, que lindo isso'. A Hebe era uma boa compradora. Então, ir na casa dela era uma delícia, porque eu saía de lá com a mala bem levinha (risos).
A Hebe era uma pessoa muito bacana. Ela era muito amiga da Lolita Rodrigues, da Nair Bello [1931-2007] e da Laura Cardoso. Juntava essas pessoas... Nossa, o que você dava de risada. Você não acredita (risos). Eram muito bacanas. Muito loucas (risos).
raphael dias/tv globo
O ator com Igor Rickli e Jayme Monjardim em Flor do Caribe (2013)
Notícias da TV - Sergio, e a história que você contou no livro de que quase foi uma das vítimas do Bateau Mouche?
Sergio Mamberti - A Yara Amaral era minha amiga de falar todo dia. Uma amiga dela, que era dona de uma fábrica de cosméticos, falou: 'Vou dar uma viagem para você no Bateau Mouche'. A Yara falou: 'Não sei. Tenho um certo medo do Bateau Mouche. Esse negócio de entrar no mar. Eu fico assustada'. Falei: 'Vai ser uma delícia'. Mal sabia ela que eles tinham reformado a barca e deixaram a quilha muito curta. Então, com o número de pessoas que estava lá dentro, ela virou. Muita gente morreu afogada ali.
De manhã, ela falou: 'Consegui dois lugares para você e para o seu amigo, que está hospedado na sua casa'. Falei: 'Ed, vamos? Vamos para o Bateau Mouche'. Ele falou: 'Não, Sergio. A gente já combinou com outros atores que a gente ia passar [o Réveillon] na areia. Não vou ficar numa viagem careta com turista e com não sei mais quem. Sei lá o que esses turistas vão aprontar. Se estiver chato, não posso nem sair porque estou no meio do mar'.
Falei: 'Yara, o meu amigo não quer ir' (risos). Ela falou: 'Tudo bem, Serginho. Vou com a minha mãe e amanhã você vai almoçar na minha casa. Já preparei um almoço muito bacana para nós'. Quando foi de madrugada soubemos do naufrágio. Quem me telefonou foi o Paulo Betti: 'Sergio, você não sabe o que aconteceu. O barco que a Yara estava virou. Morreu Yara, a mãe dela... Morreu um monte de gente'. Falei: 'Nossa, Senhora. O Ed me salvou. Foi um anjo'.
Veja a entrevista de Sergio Mamberti ao Notícias da TV:
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