MÊS DA DIVERSIDADE
ESTEVAM AVELLAR/TV GLOBO
Félix (Mateus Solano) e Niko (Thiago Fragoso) em Amor à Vida (2012): beijo inédito na Globo
DANIEL FARAD
Publicado em 6/6/2020 - 5h34
Durante os quase 70 anos das novelas brasileiras, os personagens LGBTQ+ já foram alvos de censura, ameaças de morte, boicote e ainda hoje são um tabu para parte do público e também dos próprios autores. Nas últimas décadas, porém, os roteiristas têm desafiado o preconceito e se surpreendido com a resposta do audiência --tanto pela torcida por casais homoafetivos quanto pela aceitação de tramas que abordam a transexualidade.
"É preciso reconhecer que já avançamos muito nos folhetins, mas com certeza absoluta precisamos avançar muito mais. A teledramaturgia já está mais à vontade, mas a disparidade entre a gama de conflitos desses personagens com os heterossexuais é enorme", avalia o escritor Felipe Cabral, que colaborou com tramas como Totalmente Demais (2014) e Bom Sucesso (2019).
Os primeiros registros datam da década de 1960, quando Sérgio Brito interpretou um homossexual no especial O Caso Mauritius (1960), na extinta TV Tupi. O canal também foi o responsável por exibir o primeiro beijo entre pessoas do mesmo sexo em Calúnia (1963), teleteatro protagonizado por Vida Alves e Geórgia Gomide.
Com a instauração da Ditadura Militar (1964-1985), a repressão varreu para debaixo do tapete tudo aquilo que considerava imoral, incluindo as pessoas LGBTQ+. Além da perseguição nas ruas, o regime também proibiu Gilberto Braga de sequer mencionar a palavra gay para caracterizar Inácio (Dennis Carvalho) em Brilhante (1981) --o filho de Chica (Fernanda Montenegro) tinha "problemas sexuais".
Os militares também censuraram um casal lésbico em Os Gigantes (1979) e limaram a trama em que João Ligeiro (Maurício Mattar) se descobria homossexual em Roque Santeiro (1985).
REPRODUÇÃO/MEMÓRIA GLOBO
Inácio (Dennis Carvalho) e a mãe Chica (Fernanda Montenegro) em Brilhante (1981): censura
Com o fim da censura, a década de 1990 trouxe alguns dos primeiros personagens abertamente homoafetivos das novelas. "Quando cresci, uma das minhas referências era o casal de lésbicas que, rejeitadas pelo público, foram mortas na explosão de um shopping em Torre de Babel [1999]. Não era um exemplo muito animador. Como jovem gay, indicava que a sociedade não aceitava", explica Felipe.
O roteirista também se lembra de outros casos, como o de Sandrinho de A Próxima Vítima (1995), que rendeu ameaças de morte para o ator André Gonçalves, ou o veto da emissora ao beijo entre Júnior (Bruno Gagliasso) e Zeca (Erom Cordeiro) no último capítulo de América (2005).
Na opinião de Cabral, hoje já há referências mais positivas para que as pessoas se vejam representadas na TV, sobretudo do celebrado beijo entre Félix (Mateus Solano) e Niko (Thiago Fragoso) em Amor à Vida (2013). O gesto de carinho seria o primeiro da Globo quase dois anos depois de o SBT exibir a troca de afeto entre duas mulheres em Amor & Revolução (2012).
"A gente ainda precisa avançar urgentemente. Os personagens gays, lésbicas e trans só dão um beijo por novela na maioria dos casos, quando têm a sorte de terem um par romântico. Além disso, é recorrente a demanda por personagens LGBTQs negros, o que esbarra em outro problema de representatividade", considera o autor.
REPRODUÇÃO/TV GLOBO
Pablo (Rafael Infante) beija William (Diego Montez) em Bom Sucesso (2019): gesto de carinho
Em Bom Sucesso, Felipe escreveu a cena que viria a se tornar o primeiro beijo entre homens na faixa das sete da Globo. A sequência foi elogiada pela naturalidade dos gestos de William (Diego Montez) e Pablo (Rafael Infante), que pegaram o público de surpresa, sem alarde.
A trama ainda nem estava no ar quando o colaborador decidiu incluir um selinho no momento em que o publicitário se despedia do namorado para um dia de trabalho na editora Prado Monteiro. Os titulares Rosane Svartman e Paulo Halm deixaram a indicação no texto final e o script seguiu normalmente para a gravação.
"O beijo foi ao ar tanto tempo depois que eu havia escrito aquela cena, que eu mesmo me peguei surpreso quando assisti. Cheguei até a pensar na hora que os atores tinham improvisado! Corri pro roteiro e me recordei de tudo. Foi um momento mais que especial do qual meu orgulharei para sempre", revela.
DALTON VALÉRIO/DIVULGAÇÃO
O roteirista Felipe Cabral, de Bom Sucesso (2019): primeiro beijo homoafetivo na faixa das 19h
Cabral acredita que a diversidade de profissionais, em gênero, etnia ou condição social, é capaz de promover mais diversidade nas novelas. "Com personagens transexuais, por exemplo, existem tantos artistas trans pelo país, então por que não dar a oportunidade para que esses talentos também apareçam em cena?", indaga.
Ele não vê um casal homoafetivo como protagonista de um folhetim tão cedo, porém questiona se o público já não estaria preparado para maiores avanços.
"Para mim já passou da hora, mas eu tenho a noção de que atualmente isso não vai acontecer em novelas da TV aberta. Acredito que o público já está consumindo diversos programas repletos de representatividade na televisão por assinatura e no streaming. Prefiro acreditar que nosso público quer mais diversidade e, mais do que 'preparado', ele aguarda ansiosamente", arremata o escritor.
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