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EM 1985

Símbolo do fim da censura, Roque Santeiro teve de cortar gays, 'bosta' e traição

Divulgação/Memória Globo

Os atores Regina Duarte e Lima Duarte na versão de 1985 de Roque Santeiro, liberada para ir ao ar

Regina Duarte (Porcina) e Lima Duarte (Sinhozinho Malta) em cena da versão de 1985 de Roque Santeiro

LUCIANO GUARALDO

Publicado em 22/10/2019 - 5h42

Lançada em 1985, a novela Roque Santeiro se tornou um símbolo da dramaturgia nacional contra a censura. Afinal, dez anos antes, uma versão da trama havia sido proibida de ir ao ar pelos militares. Mas a queda do regime não significou o fim dos cortes na história: a Nova República mandou tirar insinuações homossexuais, cenas de adultério e palavras como "bosta", consideradas de baixo calão pelo governo.

As revelações sobre a censura posterior ao fim da Ditadura Millitar (1964-1985) estão em Herói Mutilado - Roque Santeiro e os Bastidores da Censura à TV na Ditadura, livro que a jornalista Laura Mattos lança nesta terça (22) em São Paulo. A obra se debruça sobre documentos do governo e anotações do autor Dias Gomes (1922-1999) para traçar um panorama de como a cultura sofreu na Ditadura Militar (1964-1985).

Laura aponta que as intervenções nas novelas não chegaram ao fim quando José Sarney assumiu a Presidência do Brasil. A DCDP (Divisão de Censura de Diversões Públicas), departamento responsável por tesourar as obras, montou um calhamaço de 597 páginas sobre a versão de 1985 de Roque Santeiro --um dossiê e tanto para uma trama que sequer deveria ser retalhada, já que, oficialmente, a Censura acabara com a ditadura.

Um dos personagens que chamou a atenção da DCDP foi João Ligeiro, vivido por Maurício Mattar. Irmão caçula de Roque (José Wilker), o vaqueiro destemido acendeu um sinal de alerta porque evitava se relacionar com mulheres e tinha maneirismos delicados, quase femininos. Os censores chegaram a enviar questionamentos à Globo sobre as reais intenções do trabalhador.

No decorrer da trama, dois costureiros que chegaram à cidade de Asa Branca para fazer o vestido de noiva de Porcina (Regina Duarte) também dispararam o temor dos censores, por suas "atitudes ostensivamente efeminadas, contrariando o que recomenda a instrução normativa". Uma fala que insinuava a relação entre dois homens, sem nenhum contato físico, foi cortada do capítulo 40.

Profissionais do governo que analisavam os roteiros de Roque Santeiro também criaram obstáculos para a exibição de qualquer cena de adultério. Lulu (Cássia Kis Magro), casada com Zé das Medalhas (Armango Bogus), que a agredia e reprimia, não pôde beijar nem Roque nem Ronaldo (Othon Bastos). O cineasta Gerson (Ewerton de Castro) também foi proibido de se envolver com uma de suas atrizes, Linda (Patrícia Pillar), porque ela já era casada com Tito (Luiz Armando Queiroz).

Coriolano de Loyola Cabral Fagundes, então chefe da DCDP, justificou os cortes às puladas de cerca ao dizer que "a abordagem da infidelidade conjugal extrapolava o horário previsto para a exibição" --Roque Santeiro, novela das oito da Globo, naquela época estava entrando no ar às 21h, por causa do horário eleitoral.

Bosta ou cocozinho?

No livro, Laura Mattos revela ainda curiosidades sobre o que passava ou não pela tesoura. No capítulo 97 da novela, a frase "Joga bosta no ventilador" foi proibida, mas o termo "cocozinho" foi liberado. A justificativa? A segunda "foi dita de forma menos incisiva e desprovida de agressividade".

Os cortes foram tantos que Dias Gomes, que antes estava animado com o discurso de que a censura seria substituída pela classificação indicativa, ficou frustrado e soltou o verbo em uma entrevista à revista Veja de 23 de outubro daquele ano. "A Nova República é uma velha que fez plástica", detonou.

O ataque surtiu efeito: no dia seguinte, conta Laura na obra, Coriolano foi chamado para uma reunião com Fernando Lyra, então ministro da Justiça (ao qual a DCDP estava subordinado).

"O ministro proibiu cortes e reafirmou que a Divisão de Censura de Diversões Públicas deveria funcionar como órgão classificatório. Se não fosse possível negociar com os produtores, a DCDP deveria simplesmente classificar a obra para outro horário", relata a jornalista. À Folha de S.Paulo, Coriolano definiu seu encontro com o supervisor como "uma tremenda bronca".

Com medo de novos embates com o superior, o chefe da DCDP passou a liberar tudo. A partir do capítulo 110 (de 209), nada mais foi mexido. Censores apontavam cenas possivelmente polêmicas, mas Coriolano olhava para o outro lado. Sequências de adultério, tentativa de suicídio e até o relacionamento entre um padre e uma mulher passaram batidas pelo responsável. "Libere-se sem cortes", assinalou ele.

Após a Constituição de 1988, a televisão passou a trabalhar com classificação indicativa de acordo com horários de exibição --dependendo do público para o qual cada atração era liberada, ela só poderia ir ao ar depois de um certo horário. A determinação de faixas de exibição caiu em 2016, mas a sugestão etária continua na ativa até hoje.

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