DE ÉTICA A RELIGIÃO
FOTOS: REPRODUÇÃO/SBT
Segundo especialistas, androides como Pinóquio (João Pedro Delfino) devem chegar à realidade
Diferentemente do conto de fadas, o Pinóquio de Poliana Moça não é apenas um boneco de madeira. O personagem de João Pedro Delfino é um robô. A atualização da história clássica pode não ter tido intenção, mas acabou refletindo mudanças que devem atravessar o mundo nas próximas décadas. Os dilemas da ficção serão comuns em uma sociedade que não consegue concluir o que difere um ser humano de um robô.
"Se eu fosse dar um chute de quando essa dúvida ira surgir, eu acho que são nos próximos 20 anos. Em cem anos, no máximo, [o robô] vai ser igual a gente. Temos o smartphone há dez anos, e olha como isso revolucionou completamente a sociedade. Há cem anos estávamos começando a fabricar carros. Essas revoluções estão chegando com uma velocidade espantosa", diz Reinaldo Bianchi, professor de Engenharia Eletrônica e Mecatrônica do Centro Universitário FEI.
Parece longínquo, mas situações como essa já estão tomando conta das mídias. Exemplo disso foi a intensa discussão gerada por meio de um simples comentário de um profissional do Google. O especialista em IA (Inteligência Artificial) declarou que um de seus robôs tinha atingido a consciência.
Neste caso, não era um equipamento humanoide nem nada do gênero: apenas um programa de computador. Ainda assim, o debate movimentou especialistas nas mais diversas áreas de tecnologia, filósofos, sociólogos e até teólogos. Imagine se ele tivesse a aparência minimamente humana?
"A aplicação era um robô especializado em conversa e que conseguia interagir com humanos de forma que parecesse existir um humano do outro lado da tela. As aplicações de IA estão ficando cada vez mais convincentes porque elas estão sabendo processar uma quantidade grande de informações e formular diálogos a partir disso", explica Carlos Affonso de Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade.
"Mas uma máquina dizer que está feliz ou triste não significa que ela esteja feliz ou triste. Ela apenas aprendeu a usar essas expressões em certos contextos", completa o especialista.
Pinóquio conseguiu conversar sem dar 'pinta de robô'
Rodney Brooks afirma que um robô será considerado humano quando conseguir sentir frio na barriga. É uma alegoria para os sentimentos tipicamente humanos, como o medo e a ansiedade. No caso do robô do Google, esse argumento foi o suficiente para destruir a ideia de que ele é consciente.
Antes de tudo é preciso chegar a uma conclusão do que é consciência --dilema da filosofia tradicional há mais de 400 anos. É ter raciocínio lógico? Ou reconhecer a si mesmo enquanto individuo --como diria René Descartes (1696-1650), com seu "penso, logo existo", ainda em 1637? Conseguir agir mediante estímulos, como os instintos humanos?
As barreiras ficarão ainda mais nebulosas, porque os robôs tendem a evoluir. Para Bianchi, a "revolução" tem dois lados: primeiro, o conhecimento por conhecimento. "Queremos entender como o ser humano funciona. Construir um robô humanoide pode nos ajudar a entender o que está acontecendo dentro da gente", explica.
Por outro lado, há a questão comercial --que será abordada até pela Globo em Travessia, a próxima novela das nove. Elon Musk é um dos entusiastas em criar androides para trabalhar em todas as áreas de suas empresas. Por enquanto, até pesquisadores acreditam que é um "surto" do bilionário. Por enquanto.
Ao considerar os bilhões de dólares que ele investe em pesquisas relacionadas ao tema, é possível que tenhamos modelos humanos perfeitos --e com uma inteligência emocional bastante avançada-- em cerca de 20 anos.
Com o tal "friozinho" na barriga, é possível considerar os robôs iguais aos humanos? Bom, depende do ponto de vista. Aí, entra outro ponto que costuma dar muito problema: os aspectos culturais e, em outra instância, a religião.
"Para os católicos, protestantes e muçulmanos, por exemplo, Deus fez o homem à sua imagem e semelhança. Ele deu a alma nesse processo, e nada sem alma pode ser inteligente. Na visão deles, nenhum robô vai ser igual ao ser humano, simplesmente porque Deus não o fez. Na cultura japonesa, no entanto, tudo tem alma. Nos animes, vemos samurais encontrando a alma de uma flecha, de uma pedra. Por lá, a aceitação do robô seria mais fácil", exemplifica o professor da FEI.
É justamente a integração à sociedade que perturba a mente de Pinóquio no folhetim. Ele sente alegria e medo, consegue ter consciência de seu corpo e conversar com seres humanos. O público consegue ouvir os pensamentos dele. É uma fantasia, obviamente --os próprios personagens citam que o boneco ganhou vida por meio de um cristal encantado--, mas pode acontecer.
Pinóquio reflete sobre o próprio estado em Poliana Moça
Além dos aspectos religiosos e filosóficos já mencionados, ainda existem as questões práticas. Os robôs teriam os mesmos deveres e direitos que os seres humanos? Ou não seriam protegidos pela Lei?
Na ficção científica, há quem tente entender isso durante pelos menos de 70 anos. Isaac Asimov (1920-1992) chegou a enumerar três leis que limitariam o comportamento dos robôs em I, Robot (Eu, Robô, em tradução livre, lançado em 1950).
A primeira regra exige que o robô nunca faça mal a ser um ser humano. Ele também deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que entrem em conflito com a primeira lei. Ainda assim, eles podem e devem proteger sua própria existência --desde que isto não entre em conflito com as outras leis.
Parece loucura, mas regras assim podem vir a ser necessárias. Até porque problemas parecidos já são considerados por pesquisadores. "Pensemos em um carro autônomo, que precisa decidir se vai desviar de um ciclista ou não; se ele desviar, tem chance de matar quem tá dentro dele; se não, pode matar o ciclista. Normalmente, a moral do ser humano faz com que ele desvie. O robô, não. Isso também precisa ser considerado", exemplifica Bianchi.
O tema ganhou relevância entre os pesquisadores a partir de abril de 2021, quando um acidente com um carro da Tesla matou duas pessoas no Texas, nos Estados Unidos. Desde então, dilemas como esse vêm sendo considerados no aprendizado da máquina. Processo que, aliás, é bem semelhante à forma com que o ser humano apreende as coisas.
"No caso dos robôs, são modelos matemáticos, completamente baseados em álgebra e equações. É o equivalente em função matemática ao que os nossos neurônios fazem. A visão dos mamíferos, por exemplo, é a parte que os cientistas mais entendem do corpo humano. E isso já foi copiado com perfeição", argumenta.
Apesar de o drama de Pinóquio ter sido atualizado, os conflitos do personagem permanecem. Ele representa a criança tomando consciência de si mesma: as discussões, o amadurecimento, as mentiras contadas aos pais na fase da adolescência. Tudo isso ainda está ali. Embora não exista nenhuma explicação tecnológica para o nariz do boneco crescer quando ele mente.
Nariz de Pinóquio cresce com mentiras
Ao mesmo tempo, outro arquétipo bastante antigo também permanece: cientistas desafiam Deus e criam invenções que se voltam contra eles. Do livro Frankestein (1818) à franquia de filmes Matrix (1999-2021), a fórmula é bem conhecida. Mas isso não tira a importância de ela ser abordada novamente em um programa infantil.
"Ainda que estejamos distantes de uma IA consciente, essas ferramentas vão modificar nossos hábitos e transformar muitas profissões. Talvez quando essas crianças de hoje estiverem na fase de escolher uma profissão essa carreira já não se pareça mais com o que ela é hoje. Entender os dilemas da tecnologia (para que ela serve, quais seus benefícios e como ela pode ser abusada) é uma questão essencial para a formação das crianças", ressalta Carlos Affonso de Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade.
Poliana Moça é exibida de segunda a sexta-feira, às 20h30, no SBT. A novela dá continuidade à saga de Poliana (Sophia Valverde), menina que usa o Jogo do Contente para enxergar o lado bom da vida. A infância da personagem foi abordada no folhetim As Aventuras de Poliana, que a emissora colocou no ar em 2018.
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