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OPINIÃO

Travesti Cintura Fina é atacada na volta de Hilda Furacão no Globoplay

DIVULGAÇÃO/GLOBO

Matheus Nachtergaele com a mão na cintura, usando brincos, pulseiras e colares, além de um cinto. Ele está na frente de um bar e segura um copo na mão

Matheus Nachtergaele interpretou a travesti Cintura Fina em Hilda Furacão

MIGUEL ARCANJO PRADO

pauta.arcanjo@gmail.com

Publicado em 24/7/2021 - 6h30

A volta da minissérie Hilda Furacão no Globoplay acendeu uma polêmica que não existiu na época em que a produção, escrita por Gloria Perez e dirigida por Wolf Maya, foi ao ar, em 1998, baseada no romance do escritor mineiro Roberto Drummond (1933-2002).

As discussões nas redes atuais não são sobre a bela prostituta vivida por Ana Paula Arósio em sua estreia na Globo. Nem sobre o tórrido romance da protagonista com frei Malthus, papel de Rodrigo Santoro, chocando a moral da família tradicional mineira.

A polêmica agora é sobre a mais marcante coadjuvante da produção gravada em Minas Gerais: Cintura Fina, travesti interpretada por Matheus Nachtergaele.

'Bicha da TV'

Em entrevista recente ao site site F5, Matheus contou que sua família foi contra ele interpretar a personagem em seu primeiro grande papel na televisão, porque seus parentes temiam que o ator, então com 30 anos, ficasse marcado como "a bicha da TV".

Matheus já tinha uma carreira de respeito no teatro, em peças premiadas do grupo paulistano Teatro da Vertigem, como Paraíso Perdido e O Livro de Jó. Contudo, não deu bola para os familiares e mergulhou de cabeça em Cintura Fina, que lhe abriu as portas não só da TV como também do cinema. "Vi que é preciso ser muito macho para ser travesti de rua", definiu o artista paulistano.

A personagem marcou época ao levar a história de uma travesti para o horário nobre da Globo, feito histórico naquele então. Contudo, com a volta da minissérie que hipnotizou o país no streaming, muitos questionam o fato de Cintura Fina não ter sido interpretada por uma atriz travesti ou trans.

E ainda há também quem se incomode de a personagem, negra na vida real, ter sido interpretada por "um ator cis branco", como classificam os internautas.

reprodução/tv globo

Matheus Nachtergaele e Ana Paula Arósio

Pobre e prostituta

Na minissérie, baseada no livro, que por sua vez é a versão romanceada do ex-repórter Roberto Drummond para fatos reais, Cintura Fina é uma travesti pobre e prostituta, que faz ponto na rua, dona de personalidade forte e que defende as prostitutas amigas, sobretudo Hilda, de clientes violentos, utilizando-se de sua afiada navalha.

Na trama, ao lado da prostituta masculinizada Maria Tomba Homem, que também era negra na vida real e na produção da Globo foi vivida por Rosi Campos, Cintura Fina é amiga e protetora da protagonista, Hilda Furacão (1930-2014).

A jovem da família tradicional mineira abandona o noivo no altar inexplicavelmente para ser prostituta na rua Guaicurus, a zona boêmia da capital mineira, de onde desaparece anos depois sem deixar vestígios, após viver um "pecaminoso" romance com um jovem frei.

Durante o período no baixo meretrício, a estonteante Hilda arregimentou filas intermináveis de ávidos clientes e foi defendida com unhas e dentes por Tomba Homem e Cintura Fina.

Navalha lendária

Cintura Fina (1933-1995) deixou seu nome marcado não só na literatura e na televisão como também no imaginário da capital mineira, onde fez ponto na rua Guaicurus e arredores entre os anos 1950 e 1980, na região de prostituição em Belo Horizonte retratada pelo romance de Drummond e pela minissérie. O fio de sua navalha virou lenda na cidade.

O fato de a personagem ter chegado à TV, no fim do século passado, em si já é um feito da reverberação de sua farta personalidade. E a condenação atual de que a personagem foi um "trans fake" nada mais é que uma releitura rasa do passado e até mesmo injusta com o ator que a interpretou tão bem.

Contexto histórico

Criticar em 2021 o fato de Matheus Nachtergaele ter sido Cintura Fina em 1998, jogando a "culpa" do "trans fake" no ator, é classificar o passado com olhos do presente, sem buscar compreender o contexto da época.

Em 1998, período em que a série foi feita, não havia na sociedade brasileira a massiva discussão atual sobre representatividade na televisão.

Na época, era visto como natural o fato de um homem cis interpretar uma travesti ou mulher trans, como aconteceu também com a personagem trans Sarita da novela Explode Coração, interpretada pelo ator cis (pessoa que sua identidade de gênero é a mesma do gênero atribuído no nascimento) Floriano Peixoto.

Querer condenar Matheus Nachtergaele como errado por ter interpretado, e muito bem, Cintura Fina, é desonesto. Claro que hoje seria mais difícil a Globo escalar um ator para viver uma travesti, mas naquela época e até poucos anos atrás isso não só era aceitável como ainda figurava como ato de coragem do artista e da emissora.

reprodução/arquivo da polícia de minas gerais

A verdadeira Cintura Fina

Travesti tem biografia

Para quem desejar saber mais sobre quem foi Cintura Fina, a travesti é tema da biografia Enverga, Mas Não Quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte (Editora O Sexo da Palavra), escrita por Luiz Morando, doutor em literatura comparada pela UFMG, onde é professor, e especialista em memória LGBTQIA+. O livro apresenta mergulho profundo na vida da personagem icônica, de forma mais profunda que na TV ou no romance de Drummond.

Em minuciosa pesquisa, o autor procurou ir além do que a imprensa falou à época sobre Cintura Fina, chamada nas páginas dos jornais mineiros de "Marilyn Monroe dos detentos, anormal, larápio, gatuno e invertido sexual", analisando ainda os processos policiais que ela respondeu com seu nome masculino, José de Arimateia Carvalho da Silva, em uma época em que nome social estava ainda longe de virar lei.

"Cintura Fina era uma travesti que se tornou uma espécie de lenda e mito em Belo Horizonte", recorda o autor. Ela nasceu em Fortaleza, no Ceará, e chegou na capital mineira em 1953 aos 20 anos, vivendo na cidade até o fim dos anos 1970, se prostituindo nas ruas do baixo meretrício de Belo Horizonte. Depois, viveu os últimos 15 anos de vida em Uberaba, no Triângulo Mineiro.

O autor lembra que Cintura Fina "tinha um padrão de gênero e sexualidade que, dentro de uma sociedade mais tradicional, não era aceita ou bem vista". Mesmo desdenhada por muitos, Cintura Fina reinou nas ruas da zona boêmia de BH, onde impunha respeito e exigia ser tratada como mulher.

A figura não era do tipo que baixava a cabeça, e enfrentava inclusive a polícia, que insistia em lhe chamar pelo nome masculino de batismo. Cintura Fina era vaidosa e gostava de usar vestidos, sandálias de salto, pintar as unhas, pinçar a sobrancelha e passar batom vermelho.

Quem se atrevesse a debochar de seu estilo ou a bater nas suas amigas prostitutas acabava conhecendo o fio de sua navalha, atirada com destreza técnica de um elástico --é importante ressaltar que o artefato só era utilizado em defesa própria, já que Cintura Fina jamais cometeu assassinato.

Pioneira

"Cintura Fina foi vanguarda e precursora dessa performatividade de gênero travesti entre nós", define o autor de sua biografia e lembra que "Cintura Fina ganhou liderança e reconhecimento na zona de meretrício da cidade, protegendo as mulheres prostitutas que eram vítimas dos clientes com violência física". Isso décadas antes de a Lei Maria da Penha ser instituída.

Mesmo com as atuais críticas nas redes, é inegável que Matheus Nachtergaele fez um trabalho impecável de reconstrução da personagem Cintura Fina no imaginário popular, a fazendo ir além da memória mineira e das páginas do livro Hilda Furacão para habitar a história da TV e do entretenimento no Brasil.

Se hoje podemos discutir temas como "trans fake", é porque existiram antes personagens assim. Certamente, Cintura Fina adoraria saber que continua na boca do povo, e isso é fruto, também, da composição histórica que Matheus Nachtergaele fez dela. É um feito que merece aplausos, não ataques.


Este texto não reflete necessariamente a opinião do Notícias da TV.


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