ACERTOU QUASE TUDO
REPRODUÇÃO/TV GLOBO
Debora Bloch viveu a professora Lucia na trágica série Segunda Chamada, exibida na Globo e na Globoplay
HENRIQUE HADDEFINIR
Publicado em 18/12/2019 - 5h10
A série Segunda Chamada encerrou sua primeira temporada na noite de terça (17) com uma trajetória vitoriosa. Foi elogiada pela crítica, conquistou o público e acertou quase tudo, não fosse por um ligeiro exagero dramático. Algo que a atração criada por Carla Faour e Julia Spadaccini tentou corrigir no último episódio, com um final mais otimista.
O enredo da atração não é novo: professores de escolas de periferia ajudam a transformar as vidas dos alunos. Esse tipo de história é recorrente no cinema, como em Mentes Perigosas (1995), que trazia Michelle Pfeiffer como a professora branca e privilegiada que se via à frente de uma turma majoritariamente negra e periférica.
O programa nacional vai na mesma direção, com Debora Bloch no papel principal. Mas a professora Lúcia, ao contrário das tutoras cinematográficas, não carrega o otimismo como contraponto ao universo denso em que está inserida. A lei dos protagonistas atormentados vigente na dramaturgia da Globo segue firme, e a mocinha se mostra um poço de traumas e tragédias.
De fato, é na exploração da vida pessoal da professora que o produto final fica com arranhões na qualidade. Lúcia aparece como figura central da história, mas são tantos dramas que ela passa bem menos tempo em sala de aula do que os colegas.
Com um mistério sobre a morte do filho, um marido que teve um AVC e um caso extraconjugal com o diretor da escola, a professora se desloca do magistério lá pelo meio da temporada e investe todo seu tempo para resolver essas questões.
Como a professora Sônia (Hermila Guedes) vive outro grande problema no casamento abusivo, a série se desvia um pouco da rotina escolar e se inebria do próprio potencial para a exploração do sofrimento.
Em Mentes Perigosas, a professora jogava doces pela sala como prêmio para quem prestasse atenção nos conteúdos. Em Mudança de Hábito 2 (1993), a pedagoga de Whoopi Goldberg convencia os alunos a estudarem por causa da música. Mas esses enredos tinham um objetivo em comum: mostrar a vida por trás dos preconceitos contra a pobreza e a periferia com otimismo.
Segunda Chamada vai fundo em uma série de questões muito pertinentes, e quem já teve contato mínimo com o ensino noturno para adultos do sistema público de educação sabe que não há exagero nenhum nos casos mostrados. Porém, mais do que uma questão de conteúdo, o programa é mal resolvido com sua forma.
Com tanto investimento na resolução dos dramas dos professores, as vidas dos alunos não evoluem tanto, oque acaba esvaziando o clímax de algumas histórias. No episódio final, por exemplo, uma tentativa de suicídio é embasada com pouquíssimas cenas que justifiquem um recurso dramático tão extremo.
O sofrimento parece ser a única evolução possível nos enredos. Mortes acontecem quase todas as semanas, esvaziando as possibilidades e reforçando uma "mania" que parece ter tomado conta do estilo narrativo da Globo: as séries viraram um mural de sofrência, em que a estética e o texto privilegiam o choque muito mais do que um ponderamento sobre razões ou um mínimo vislumbre das saídas mais otimistas.
Esse drama estético tão forte tem respostas positivas para a série: o público também foi treinado para achar "forte" e "realista" o enredo dramático expositivo. Porém, a formatura dos alunos, que encerra o ano, pretende exatamente aquilo que faltou a temporada toda: algum descanso otimista em meio a tanto pesar. A canção Tente Outra Vez, de Raul Seixas, se encaixa perfeitamente no contexto.
Enfim, a personagem de Debora Bloch termina a história se despedindo da profissão. Se Lúcia não retornar no ano que vem, a série pode reajustar o volume dos acontecimentos. As vidas dos alunos precisam ser o destaque, e merecem ter mais tempo de construção para que o impacto das viradas as tornem realmente grandes.
Apesar desse tom a mais, Segunda Chamada soube usar as ferramentas a seu favor durante seus 11 episódios, se confirmando como um produto complexo, denso e socialmente relevante, tal qual fez a série Sob Pressão. Fica a torcida para que, em algum momento do futuro, o sofrimento deixe de ser só um terreno de exploração.
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