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MOVIMENTO ABOLICIONISTA

Os Guerreiros existiram de verdade? Nos Tempos do Imperador 'suaviza' revoltas

REPRODUÇÃO/TV GLOBO

Maicon Rodrigues, caracterizado como Guebo, e Musipere, o Jamil, cavalgam após ação de Os Guerreiros em cena de Nos Tempos do Imperador

Guebo (Maicon Rodrigues) e outros membros do grupo usam máscaras para não serem reconhecidos

SABRINA CASTRO

sabrina@noticiasdatv.com

Publicado em 4/2/2022 - 6h20

Em Nos Tempos do Imperador, Os Guerreiros, grupo comandado por Guebo (Maicon Rodrigues) e Jamil (Blaise Musipere), representam a resistência negra contra a escravidão. Na vida real, não existiu nenhum movimento com o mesmo nome do representado na novela das seis da Globo. Entretanto, escravizados e libertos organizaram ações no período do reinado de dom Pedro 2º (1825-1891). As revoltas, porém, eram bem mais sangrentas do que as mostradas no folhetim.

Um exemplo foi a fuga em massa organizada por Pio, ex-escravizado que se tornou estivador em Santos. Em 1887, nas vésperas da abolição, ele juntou cerca de 80 escravizados na região do Itu, interior de São Paulo, em direção a um quilombo no litoral.

Quando chegaram à região de Santo Amaro, bairro da capital de São Paulo, foram interceptados por forças policiais. O encontro foi um derramamento de sangue, especialmente para os foragidos. Eles foram massacrados --mas não sem oferecer resistência.

Maria Helena Machado, especialista em abolição pela Universidade de São Paulo (USP), estudou revoltas populares em sua tese de doutorado. Por causa de sua pesquisa, ela se tornou a primeira pessoa a encontrar os antigos livros de ocorrências da polícia no Arquivo do Estado. A historiadora percebeu que os jornais da época minimizavam a situação do país, em completo caos por causa das constantes e violentas fugas de escravizados.

A descoberta dos arquivos por Maria Helena aconteceu apenas na década de 1990, muito depois da abolição. Isto pode explicar porque há pouco conteúdo sob a ótica das vítimas, os principais interessados, em livros didáticos e obras culturais. Tanto que, apenas em 2021, uma novela representou as demandas da população negra dentro do movimento abolicionista.

REPRODUÇÃO/tv globo

Maicon Rodrigues, caracterizado como Guebo, corre de ação de Os Guerreiros em cena de Nos Tempos do Imperador

Os Guerreiros organizam fugas em massa

Entre os registros, há um grupo associado a uma seita religiosa denominada Arásia. Para serem admitidos no coletivo, liderado pelo liberto Felipe Santiago, os adeptos passavam por rituais de iniciação, recebiam novos nomes e ganhavam marcas pelo corpo. Armados, eles invadiram Campinas, no interior de São Paulo, em uma ação violenta que, por si só, dissipa a ideia de que a abolição foi uma libertação passiva.

Outras articulações foram mais abrangentes, como o Movimento Abolicionista dos Caifazes. Formado tanto por ex-escravizados quanto pelas camadas mais baixas da população --tipógrafos, artesãos e pequenos comerciantes--, o grupo organizava a fuga de escravizados de diversas regiões do país. Por meio de uma complexa rede de comunicação clandestina, eles direcionavam os foragidos para quilombos.

Todas estas movimentações, porém, aconteceram depois do período exposto na novela, entre 1856 e 1870. Na época do folhetim, existiram revoltas isoladas e, obviamente, os escravizados sempre quiseram se libertar, mas nada de maneira tão organizada quanto a d'Os Guerreiros. A maioria tentava as alforrias, embora elas não fossem comuns.

Busca por alforrias

Mesmo a liberdade por meio da negociação ganhou força apenas depois de 1871, com a Lei do Ventre Livre. A legislação previa não só a liberdade dos filhos das escravizadas nascidos a partir de então, mas também reconhecia que os cativos podiam empreender atividades econômicas e acumular pecúlio, valor necessário para que ele comprasse sua alforria. 

Para Maria Helena, esta "facilidade" para conseguir a alforria também foi uma maneira de acolchoar os conflitos. A esperança em ter a liberdade de forma menos arriscada "acalmaria" os ânimos da população escravizada.

Afinal, foi justamente na década de 1870 que o movimento abolicionista começou a tomar forma, atingindo, de um jeito ou de outro, todas as províncias brasileiras. Neste momento, escravizados e libertos encontraram mais apoio para canalizar suas demandas pela liberdade na sociedade.

Engana-se, porém, quem pensa que o maior esforço veio de sociedades da elite ou parlamentares. O clima de instabilidade causado pelas revoltas foi o que mais favoreceu a promulgação da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888.

reprodução/tv globo

Maicon Rodrigues, caracterizado como Guebo, protesta em exposição de Teresa Cristina (Letícia Sabatella) em Nos Tempos do Imperador

Clima tenso foi uma das causas da Lei Áurea

"Os movimentos populares aceleram a campanha abolicionista e contribuíram no sentido de desorganizar o plano governamental (das elites) de uma abolição lenta e gradual", explica Ricardo Tadeu Caires Silva, professor de História da Universidade Estadual do Paraná.

"As fugas, revoltas e ações na Justiça contribuíram para quebrar a política de dominação paternalista que sustentou a escravidão por mais de três séculos no Brasil. Pressionados, os escravocratas tiveram que ceder, negociar, pactuar com os cativos a relação senhor-escravo. A médio prazo, isso ajudou a minar a autoridade senhorial e o próprio sistema escravista", completa o historiador.

Bem representados?

"Voz sensata" do folhetim, um personagem como Guebo é prova inegável de um avanço na representação dos movimentos populares pela abolição. Como afirma Caires Silva:

É fundamental que a população negra seja representada como protagonista, que suas lideranças históricas sejam conhecidas. Infelizmente ainda persiste em nosso país uma forte tendência a invisibilizar as lideranças negras ao longo da história. Embora a novela seja uma obra de ficção, personagens como Guebo existiram com outros nomes na vida real, e o conhecimento de suas lutas certamente inspirará as novas gerações a conhecerem esse passado.

Maria Helena, porém, não vê a introdução d'Os Guerreiros em Nos Tempos do Imperador como 100% positiva. Primeiro, porque o roteiro encarnou um movimento social inteiro em praticamente uma pessoa. E esta pessoa, ainda por cima, não está em situação de escravidão. Desta forma, os principais interessados --os próprios cativos-- mal aparecem na trama.

"Para ser reconhecida, a pessoa precisaria ser um herói, liberto e excepcional. Mas os escravizados tinham, sim, força para tentar se libertar. A impressão que se dá é que eles ficaram parados, passivos, como vítimas, esperando um salvador aparecer. Este tipo de abordagem é muito redutora. É um prejuízo para a consciência histórica", declara a professora.

REPRODUÇÃO/tv GLOBO

Maicon Rodrigues, caracterizado como Guebo, e Musipere, o Jamil, conversam no porto em cena de Nos Tempos do Imperador

Guebo e Jamil, libertos, são líderes do grupo

E a monarquia?

Na ficção e na vida real, dom Pedro 2º --interpretado por Selton Mello na novela-- se autodenominava a favor do fim da escravidão, mesmo que, na prática, não tenha atuado em nenhuma medida significativa pela abolição.

Para Maria Helena, a ideia não era se posicionar a favor dos escravizados, mas se pintar como um homem culto e civilizado no exterior. A imagem era estratégica, já que o Brasil enfrentava uma saia-justa nas relações internacionais.

Em 1831, foi promulgada a lei Feijó --que, teoricamente, impediria a escravidão. Só que ela foi literalmente feita "para inglês ver". A Inglaterra pressionava o Brasil com relação ao tema, e o medo de perder os negócios com o país europeu preocupou a elite.

Em 1866, o imperador recebeu cinco projetos legislativos sobre a abolição da escravidão, mas os debates foram adiados por causa da Guerra do Paraguai (1864-1870) e nunca mais retomados. O imperador não chegou a registrar, nem em um diário pessoal, como pretendia extinguir a escravidão.

A princesa Isabel (1846-1921) --Giulia Gayoso na novela--, por sua vez, não era muito melhor. Em entrevista para O Globo, Mary del Priore, especialista em Brasil Imperial, ressaltou como a monarca era pouco envolvida na causa.

Ela tinha escravos, escravos que sequer tinham rosto, que ela registra em seus escritos como 'negrinha', 'escravo de quarto', 'negros' ou 'pretos'. Não é uma pessoa que tinha um envolvimento direto com a questão. Não participou dos debates na época da Lei do Ventre Livre. Por isso, digo com todas as letras: é um abolicionismo muito epidérmico. Ela sequer participa dos debates, só assina a lei.

Ainda segundo a historiadora, André Rebouças (1838-1898), engenheiro negro que era íntimo da família imperial, registrou em seu diário que o primeiro gesto da princesa rumo à abolição ocorreu em fevereiro de 1888, apenas três meses antes do 13 de maio. Para Maria Helena, assinar a Lei Áurea foi uma tentativa de conseguir apoio para seu reinado, cada vez mais ameaçado pelos republicanos.

reprodução/tv globo

Giulia Gayoso, caracterizada como Isabel, encara a câmera séria em cena de Nos Tempos do Imperador

Isabel real está longe da mocinha da novela

Ou seja: a ideia era se livrar da escravidão, mas sem nenhuma preocupação com o futuro de quem era escravizado. Medidas como a reforma agrária, pauta do movimento abolicionista, foram deixadas de lado porque não trariam benefícios políticos à princesa.

O tiro saiu pela culatra, uma vez que, além da revolta das elites agrárias escravocratas, a princesa não conseguiu angariar o apoio popular que imaginava. Por isso, no ano seguinte, ela perderia o posto após a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889.

Sociedade Abolicionista das Camélias

Oposta ao Os Guerreiros, que se rejeitam a negociar pela liberdade dos cativos, a Sociedade Abolicionista das Camélias, comandada por Luísa (Mariana Ximenes), organiza eventos culturais para arrecadar dinheiro e comprar alforrias na novela das seis da Globo.

Grupos como esse, formados principalmente por mulheres para comprar alforrias de outras mulheres, "pipocaram" na década de 1880 –mais uma vez, depois do período apresentado no folhetim. A condessa de Barral da vida real, inclusive, se envolvia ativamente com organizações do gênero.

O nome mostrado na ficção não é exatamente verdadeiro, mas faz parte de um contexto: as camélias eram símbolo do movimento abolicionista no país. A ideia vem do romance A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho (1824-1895)

Além de a história se tratar de um amor proibido que clamava por liberdade, o autor era bisneto de um marquês com uma negra que tinha sido escravizada. Por não ter "sangue puro", ele sofreu racismo pela vida inteira e chegou a escrever sobre questões raciais. Obviamente, era contra a escravidão.

A maior parte das sociedades abolicionistas, porém, não queria ser confundida com os movimentos populares violentos. Mesmo pessoas negras em posições sociais de destaque, como o já mencionado André Rebouças, temiam ser confundidos com os mais radicais. Quem se aproximava demais dos escravizados ou libertos menos "educados" era tachado de "petroleiro".

Portanto, a "rixa" entre os movimentos era real. Contudo, as lutas se complementavam. O problema é que, durante muito tempo, a historiografia evidenciou apenas o abolicionismo parlamentar. "É preciso mostrar o protagonismo das camadas populares. A novela deu um passo, mas está longe de representar todo o movimento da época", finaliza Maria Helena.

Nos Tempos do Imperador chega ao fim nesta sexta (4), com reapresentação do último capítulo no sábado (5). Na segunda (7), a Globo estreará Além da Ilusão, estrelada por Larissa Manoela.

Além dos spoilers, o Notícias da TV também diariamente publica os resumos da novela das seis da Globo.


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