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COLUNA DE MÍDIA

Lei das Fake News pode incentivar mecanismo que tornou a Globo um império

Paulo Sergio/Câmara dos Deputados e Divulgação/Ju Coutinho

Montagem com fotos do deputado Orlando Silva em sessão na Câmara, e de Paulo Daudt Marinho, presidente da Globo

O deputado Orlando Silva, relator da Lei das Fake News, e Paulo Daudt Marinho, presidente da Globo

GUILHEME RAVACHE

ravache@proton.me

Publicado em 13/4/2022 - 6h35

Muito já foi dito sobre os problemas do PL 2630/2020, popularmente conhecido como Projeto de Lei das Fake News. Semana passada comentei como a proposta, se fosse aprovada, poderia blindar políticos e instituições, criando a imunidade parlamentar digital, e até beneficiar a Globo com mais de R$ 230 de milhões todos os anos.

Agora, um tema que começa a preocupar as big techs é a redação do artigo 21 do PL. A exemplo de outros artigos do projeto de lei (como novas regras para uso de dados e a obrigatoriedade de Google e Facebook pagarem empresas jornalísticas), esse artigo também tem boas chances de beneficiar a Globo e outros gigantes de mídia.

Segundo o texto do artigo, "a comercialização de publicidade e impulsionamento para divulgação por provedores sediados no exterior deverá ser realizada e reconhecida por sua representante no Brasil e conforme a legislação de regência da publicidade no país, quando destinada ao mercado brasileiro".

Em um primeiro momento, a redação pode não parecer nada demais, mas a "legislação de regência" é uma lei de 1965. Ou seja, o PL pode forçar as empresas que atuam no mercado digital a seguirem uma legislação de quando nem existia internet. A aplicação da norma de 1965 no digital, ao pé da letra, no futuro abriria margem para a imposição do mecanismo da bonificação por volume (mais conhecido como BV) na internet e redes sociais.

A lei 9.294, de 1996, também regula a publicidade no país, mas ela basicamente dispõe sobre as restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígeros, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas e já é seguida por todos.

Bonificação por Volume (BV) no digital

Na Lei de 1965, o artigo 11 diz que "a comissão, que constitui a remuneração dos Agenciadores de Propaganda, bem como o desconto devido às Agências de Propaganda serão fixados pelos veículos de divulgação sobre os preços estabelecidos em tabela". 

O parágrafo único do mesmo artigo afirma que "não será concedida nenhuma comissão ou desconto sobre a propaganda encaminhada diretamente aos veículos de divulgação por qualquer pessoa física ou jurídica que não se enquadre na classificação de Agenciador de Propaganda ou Agências de Propaganda, como definidos na presente Lei".

Em tese, com base nessa lei de 1965, os defensores da BV poderiam exigir que Google e Facebook passassem a seguir as mesmas regras da Globo e grandes grupos de mídia tradicional.

A BV é um mecanismo em que os veículos monetizam as agências de publicidade pelo trabalho delas. Previamente, o veículo combina com a agência qual percentual irá pagar a ela. Esse percentual aumenta conforme o volume, chegando a até 20%. Quanto mais dinheiro a agência entrega para o veículo, mais ela ganha.

Esse mecanismo foi intensamente incentivado pela Globo nas últimas décadas. Ele foi fundamental para que a emissora se tornasse o império em que se transformou no mercado brasileiro. A Globo não só paga BV como paga antes de as agências trabalharem. Ela adianta o dinheiro que só irá circular nos meses seguintes. Isso torna as agências reféns da Globo. Elas trabalham para a emissora.

Para executivos do SBT, Record e Band, a BV explica o fato de a Globo ter cerca de 70% das verbas que vão para a TV no Brasil, apesar de sua audiência hoje não passar de 35% de toda a televisão.

Google e Facebook pagam BV, mas pouco

Empresas de tecnologia como o Google também pagam BV, mas é uma parcela pequena, voltada a um grupo limitado de clientes, e pouco relevante no volume geral de negócios. A maior preocupação das fontes ouvidas pelo Notícias da TV é que o pagamento da BV seja imposto à totalidade dos clientes.

"Grande grupos de mídia tradicional seriam naturalmente beneficiados. Além de estarem próximos das grandes agências, as empresas mais capitalizadas têm recursos para adiantar os pagamentos de BV no início do ano e fechar grandes pacotes comerciais", diz um executivo de uma big tech, que pediu para não ser identificado.

Na visão dos opositores do projeto de lei, a propositura tenta "consertar" um problema que não existe, já que o mercado de publicidade digital tem crescido justamente por ser mais eficiente do que alternativas como a TV. A medida seria uma maneira de encarecer a publicidade no digital para tornar as mídias tradicionais mais competitivas.

"Uma lei para aumentar o custo da publicidade digital não faz sentido", diz outro executivo, também sob anonimato. "Prejudicaria todos os clientes, mas principalmente empresas de pequeno e médio porte, além de veículos de mídia sem recursos para adiantar bonificações por volume no início do ano."

Terrorismo das big techs

Em conversa com a coluna, o relator do projeto, o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), disse que a afirmação não faz sentido, uma vez que a BV não é obrigatória. "Não pode ser criada obrigação a partir da remissão a leis sobre publicidade", afirma.

"A nossa defesa é a de que os contratos de publicidade para o mercado brasileiro sejam formalizados no Brasil e sigam as leis do país. Tudo mais faz parte das narrativas das big techs que se insurgem contra qualquer parâmetro que não sejam os seus próprios", diz Silva. "Dizer que vai ser criada uma obrigação sem criá-la é mais uma das big techs, parte da tática 'terrorista'", acrescenta.

O Conselho Executivo das Normas-Padrão (Cenp), entidade que regula agências de publicidade e meios, até recentemente se opunha ao PL, mas mudou de posição após alterações no texto. O artigo 7, que impedia o uso "cruzado de dados", era uma das principais objeções da entidade. Agora, o Cenp se diz totalmente a favor da nova legislação proposta na Lei das Fake News.

Anunciantes não querem a BV

A Associação Brasileira de Anunciantes (ABA) no ano passado saiu do Cenp. O Cenp defende que as agências devem ser certificadas quanto à sua capacidade de atendimento e usar tabelas para determinar faixas de desconto-padrão, que são o percentual que indica a remuneração das agências a partir do investimento em mídia feito pelos anunciantes.

Já a ABA defende que a qualidade da publicidade não pode ser dependente "de certificações formais" e/ou de "tabelas fixas de taxas ou de descontos", classificando essas práticas como prejudiciais às relações comerciais. 

A ABA reúne anunciantes públicos e privados responsáveis por mais de 70% de todo o investimento em publicidade do país. No ano passado, a entidade lançou um documento com propostas como o fim das certificações de agências e das tabelas de desconto-padrão (o PL dificultaria essa mudança). A associação dos anunciantes têm se posicionado publicamente contra o PL.

"No âmbito da publicidade, não faltam mecanismos normativos e autorregulatórios para controle e balizamento da atuação da atividade publicitária, inclusive em meio digital, para fins de identificação da mensagem publicitária", diz Nelcina Tropardi, presidente da ABA.

Segundo a entidade, "a questão da BV não foi explorada diretamente nas discussões [do PL] até o momento'". Desse modo, ela não se posicionou especificamente sobre esse ponto.

Legal no Brasil, crime em alguns países

Vale lembrar que a prática de BV, apesar de legalizada no Brasil, é considerada crime em alguns países. No ano passado, pressionado pelo governo Bolsonaro, o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) instaurou processo administrativo contra a Globo pela prática de BV. A Globo chegou a ser proibida pelo órgão de pagar a bonificação por volume às agências, mas conseguiu reverter a decisão na Justiça. O processo está parado no Cade.

Google e Facebook resistiram durante anos antes de adotar a prática, que gera complicações fiscais para empresas multinacionais.

Um dos problemas da Lei das Fake News é que, nos últimos dois anos, a proposta que começou como uma ideia para combater notícias falsas foi se tornando uma tábua de salvação para diversos grupos econômicos influentes tradicionais, como gigantes de mídia e agências de publicidade, que viram seu modelo de negócios ser corroído pelo digital.

Como este colunista vem defendendo, a lei tem méritos, mas precisa ser mais amplamente discutida. Pagar por notícias, por exemplo, não é ruim. Mas quais regras a Lei das Fake News irá determinar para que isso seja feito sem beneficiar grandes grupos de mídia e mantendo a transparência é fundamental.

Vitória bolsonarista

Um boa notícia é que o PL teve seu regime de urgência barrado na semana passada na Câmara. O requerimento conseguiu apenas 249 votos favoráveis --precisava de 257 para ser aceito. O resultado foi uma surpresa: grupos de interesse das big techs (que se opõem à lei) e da mídia tradicional (que defendem a lei) davam como certa a aprovação do regime de urgência.

O regime de urgência obrigaria a Câmara a votar a Lei das Fake News para não travar a pauta. Como informou a revista Fórum, "o resultado contrariou as orientações partidárias. PT, União, PSD, Republicanos, MDB, PSDB, PSB, PDT, PSOL, Avante, PCdoB, PV e Rede orientaram voto a favor, sinalizando que a matéria passaria com facilidade. Apenas PL, Novo, Cidadania, PTB e governo haviam orientado contra". O resultado, portanto, foi uma vitória para o governo Bolsonaro. 

Ainda segundo a Fórum, a derrota por oito votos irritou lideranças partidárias. "As orientação não serviram de nada, não é, presidente?", reclamou o deputado Hildo Rocha (MDB-MA). "Não serviram não", respondeu o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). "Nem os líderes... Tem que ver se é líder de bancada mesmo", completou Rocha.


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