COLUNA DE MÍDIA
REPRODUÇÃO/TV GLOBO
William Bonner no Jornal Nacional da última segunda-feira (4); Globo se beneficia com novo PL
O Brasil é um país surpreendente. Veja o caso do projeto de lei 2630/2020, que ficou conhecido como PL das Fake News. Entre suas muitas intenções, tinha como plano combater as notícias falsas e ajudar o Jornalismo.
Há tempos o projeto deixou de ser sobre fake news e virou uma tentativa de atender a diversos interesses de grupos tradicionais e influentes em Brasília que vêm perdendo espaço à medida que as gigantes de tecnologia crescem no país.
Um dos pontos mais polêmicos da proposta é obrigar o Google e o Facebook a pagarem pela produção jornalística no país. Até aí, nenhum problema. As duas empresas já investem milhares de dólares em Jornalismo e afirmam não se opor aos pagamentos.
A questão é que o projeto nem mesmo se dá ao trabalho de definir o que seria Jornalismo e quais seriam os critérios utilizados para determinar quem recebe e quanto recebe. Mais que isso, o efeito da lei pode ser exatamente o oposto de sua intenção.
O projeto de lei aponta para uma regulamentação futura, que em tese poderia ser por decreto presidencial. Mas não há explicação de como isso seria feito e quem supervisionaria o processo.
Diferentemente do Marco Civil da Internet, que foi discutido durante longos anos, o PL das Fake News tenta ser aprovado a toque de caixa. Na avaliação de dois lobistas ouvidos pelo Notícias da TV, "se não passar agora, antes das eleições, não passa nunca mais".
O motivo da pressa é que o nome Lei das Fake News é sonoro, mas tem perdido relevância rapidamente à medida que as plataformas estão melhorando o combate à desinformação. Note que, até recentemente, somente o Telegram ainda não havia se enquadrado às normas do TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
Na pressa para passar a boiada, corremos o risco de assegurar, por exemplo, a a criação da imunidade parlamentar nas redes sociais. Ou seja, o PL daria uma espécie de carta branca para nossos políticos publicarem o que bem entenderem sem correrem o risco de terem seus perfis suspensos justamente por publicarem, por exemplo, fake news.
Como afirma o especialista em tecnologia Ronaldo Lemos, a lei cria a "carteirada digital". Vale a leitura do texto na Folha de S.Paulo para entender melhor os riscos dessa "pérola" de imunidade. Aqui, vou focar nos problemas da lei sobre pagamento para empresas de mídia.
A lei possui um artigo que determina que as gigantes de tecnologia como Google e Facebook deverão pagar por notícias. O problema é que na pressa os autores do PL nem mesmo se deram ao trabalho de definir o que é notícia ou Jornalismo.
O que impediria, por exemplo, um grupo religioso que possui uma rádio ou jornal dizer que as informações da igreja são notícias e exigirem o pagamento do Google e Facebook? Grupos religiosos são notoriamente influentes entre políticos. Assim, não surpreende que estejam animados com a possibilidade de uma nova fonte de receita.
Mas se uma igreja pode monetizar notícias, o que impediria outros grupos e organizações de fazerem o mesmo? Um dos grandes problemas de quem produz conteúdo jornalístico atualmente é a cópia descarada das informações.
Veículos tradicionais, como a Folha, Estadão, O Globo e tantos outros, inclusive não tradicionais, como o Notícias da TV, veem seus esforços de apuração e altos investimentos em Jornalismo diariamente sendo usados por sites que copiam e roubam o conteúdo. Nada impediria esses sites, que não investem em Jornalismo e usam robôs ou trabalhadores pessimamente remunerados, de também receberem dinheiro dos gigantes digitais.
Como o Google apontou em manifesto publicado no sábado (2), existe o risco de termos um cenário ainda pior, com grupos econômicos mal-intencionados criando sites para produzir notícias falsas e apelativas, já que esse tipo de conteúdo tem um alcance muito maior na internet e pode ser ainda melhor monetizado.
A Globo é uma das grandes incentivadoras do projeto de lei e vem usando habilmente sua influência nos corredores de Brasília. Ajudou a mover a conversa para longe das fake news e a favor do controle do uso de dados e do pagamento por notícias.
A primeira versão do PL, que era bastante restritiva ao uso de dados, foi mudada dias atrás. O texto da versão anterior não permitiria o uso de dados cruzados, o que seria um problema, por exemplo, para a Globo aproveitar informações do Globoplay em outras plataformas como a Globo.com.
Agora, pelo novo texto, a lei será flexível a ponto de permitir a emissora usar dados cruzados de suas diferentes plataformas, mas ainda dificultará a vida do Google e Facebook, que concorrem com a Globo na venda de publicidade e têm uma vantagem no amplo uso de dados de diversas fontes da internet.
Há duas semanas, em um texto na Carta Capital, adiantei que esse ponto do uso de dados deveria ser alterado, como de fato aconteceu.
Além da lei regulando o uso de dados ter ficado na medida ideal para a Globo, a empresa também pode receber uma bolada. Grandes grupos de mídia na Austrália e na França chegam a receber anualmente mais de R$ 230 milhões do Google e Facebook, como é o caso da News Corp., de Murdoch.
De fato, a Globo é a maior produtora de notícias do país, com TVs, rádios, jornal e diversos sites, então seria natural que recebesse a maior fatia do bolo. Mas a emissora realmente precisa de apoio financeiro do Google e Facebook?
Na Austrália, o bilionário da mídia Rupert Murdoch liderou a pressão sobre o governo australiano para aprovação de lei semelhante, exigindo que Google e Facebook pagassem veículos tradicionais de notícias.
O resultado é que, quase um ano após o início da lei, gigantes de mídia receberam milhões de dólares, enquanto grupos independentes e de pequeno e médio porte sofrem para fechar acordos com o Google e o Facebook.
Para complicar, quando não há acordo, fica a cargo do governo decidir quais veículos devem receber. Assim, a imprensa se torna cada vez mais dependente justamente dos políticos que deveria fiscalizar. A Austrália já anunciou que iniciou um processo de revisão da lei para avaliar problemas da legislação.
Outro problema do projeto brasileiro é a completa falta de transparência. Google e Facebook não serão obrigados a revelar detalhes dos acordos com os veículos. As empresas também não precisam explicar onde e como vão investir o dinheiro. Os recursos serão usados para pagar salários de jornalistas ou engordar os lucros dos donos dessas empresas? Essa e muitas outras perguntas o PL das Fake News não responde.
Por fim, do jeito que está, o projeto ainda corre o risco de desestabilizar futuras eleições. Se virar um jogo de vale-tudo online, no qual qualquer um pode ser considerado grupo de mídia e o governo for o responsável por decidir quem recebe e quanto recebe, existe um enorme risco de retrocesso.
Depois da Austrália, a França é o segundo país mais avançado na obrigatoriedade de Google e Facebook pagarem por notícias. Oito meses após receber uma multa de R$ 2,7 bilhões da União Europeia sob a acusação de não negociar em "boa fé" com os publishers, o Google anunciou semanas atrás um acordo com uma associação de veículos de imprensa.
A associação representa 300 publishers, mas quem manda mesmo são os gigantes da mídia. O acordo "define os princípios sob os quais o Google negociará acordos de licença individuais e termos de remuneração com os membros da Alliance", disse o comunicado da associação.
Um dos primeiros acordos fechados na França foi com o gigante Le Monde, cujo valor não foi divulgado. Ano passado, três magnatas foram para a Justiça disputar o controle do veículo. Se os veículos de comunicação que estão "perdendo dinheiro" e precisando de apoio financeiro despertam tanto interesse dos bilionários, imagine se ainda receberem uma "ajuda de milhões" do Google e Facebook.
O presidente francês Emmanuel Macron tem intensificado seus ataques às redes sociais nos últimos meses, alegando que espalham fake news. O líder do país é um ferrenho defensor da lei que exige que as plataformas digitais paguem pelas notícias. Mas, novamente, o problema está nos detalhes.
Na França, as leis de financiamento de campanha são muito rígidas. "Se você é um bilionário, não pode financiar inteiramente uma campanha, mas pode comprar um jornal e colocá-lo à disposição de uma campanha", explicou Julia Cagé, economista especializada em mídia da Sciences Po, ao NY Times.
Hoje, um dos maiores adversários do presidente francês é Vincent Bolloré, o bilionário cujo império de mídia conservador complicou o caminho cuidadosamente traçado de Macron para a reeleição ao impulsionar a candidatura de extrema-direita de Éric Zemmour, a maior estrela da rede de notícias CNews, de Bolloré, uma espécie de Fox News francesa.
Ao apoiar os adversários de Bolloré na mídia nas negociações com as big techs, Macron em tese poderia se beneficiar. Existe até mesmo o argumento de que taxar as grandes empresas de tecnologia é fácil para a União Europeia, já que a Europa não tem gigantes digitais como o Google e Facebook.
O Canadá, o Reino Unido, a Indonésia e a África do Sul manifestaram planos de criar medidas semelhantes. Nos Estados Unidos, o Congresso está procurando maneiras de fazer o Google e o Facebook pagarem por Jornalismo, mas o tema dificilmente será aprovado pelos congressistas republicanos.
Até que ponto é viável para o Google e o Facebook pagarem uma "taxa global" por notícias é questionável. À medida que mais publishers fechem acordos e mais grupos apareçam para tirar proveito desses pagamentos obrigatórios, a tendência é que os custos disparem e os pagamentos diminuam.
Existe ainda o risco de as big techs simplesmente se afastarem das notícias por se tornarem economicamente inviáveis dentro das plataformas. O TikTok, que hoje é a rede que mais cresce, apoia veículos de Jornalismo dando treinamento e suporte. Com a nova lei, poderia cortar qualquer vínculo para evitar futuros pagamentos.
Procuradas, as empresas citadas no texto afirmaram que não iriam se manifestar além das declarações já publicadas em suas próprias plataformas.
Brasília é notória por sua morosidade. Ironicamente, esse projeto de lei tão complexo está avançando rapidamente no Congresso e no Senado, o que reforça a atuação de grandes interesses nos bastidores.
Não se trata de ser contra ou a favor das gigantes de tecnologia, nem ser contra ou a favor de pagar por notícias. É sobre termos mais debate e um processo transparente ao definir os incentivos de um dos pilares da democracia: o Jornalismo independente e de qualidade.
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