112 DIAS PARADOS
REPRODUÇÃO/INSTAGRAM
Atores posam durante piquete em Nova York na terça-feira (31): negociação travou por uso de IA
A greve dos atores de Hollywood chega ao seu 112º dia nesta quinta-feira (2) com a promessa de que a resolução está próxima. Em meio a discussões importantes sobre o repasse de cachês e os pagamentos de direitos conexos, porém, um ponto crítico tem travado a negociação dos artistas com os estúdios: o uso de inteligência artificial.
De acordo com o SAG-AFTRA, sindicato dos atores nos Estados Unidos, grandes estúdios têm usado a inteligência artificial para explorar o trabalho de artistas. Um figurante, por exemplo, rodaria uma cena para um filme ou série, mas teria sua imagem reutilizada por meio da IA em diferentes produções --muitas vezes sem ser informado e certamente sem receber por esse trabalho.
Atores conhecidos por emprestarem suas vozes para animações ou games já lutam com esse problema. Avanços recentes da tecnologia permitem que novas falas sejam criadas a partir de gravações anteriores. Internautas com más intenções, inclusive, produzem falas falsas de seus atores favoritos para xingar ou ofender quem não concorda com suas opiniões.
"Eu amo meus fãs, mas é ruim quando me deparo com minha voz sendo usada sem o meu consentimento. Algumas pessoas aceitam tirar aquilo do ar, outras me dão um dedo do meio virtual. É complicado ouvir minha voz sendo usada para coisas que eu jamais diria, que eu não quero que meus filhos ouçam", disse Cissy Jones, atriz de A Casa da Coruja (2020-2023) e Transformers: EarthSpark, em debate do qual o Notícias da TV participou.
Negociador-chefe do SAG-AFTRA na greve, Duncan Crabtree-Ireland explicou que o uso de IA em Hollywood é um problema que já deveria ter sido resolvido. "A legislação não acompanhou o avanço da tecnologia, e agora estamos correndo atrás para tentar consertar isso. A melhor maneira de proteger os atores é a negociação coletiva, porque as empresas não podem usar sua voz ou sua imagem sem a autorização do sindicato. Isso nos dá uma posição de ataque em todas as plataformas, TV, cinema, streaming, games", apontou ele.
Crabtree-Ireland reconheceu, no entanto, que tentar bater de frente com a inteligência artificial seria perda de tempo. "Nós sabemos que não dá para bloquear esses avanços, pois eles vão ocorrer de qualquer maneira. Já estão ocorrendo, aliás. O que podemos fazer é lutar para que a tecnologia esteja a serviço das pessoas, e não o contrário."
O fato é que essas empresas pensam que está certo pagar por um dia de trabalho, criar uma réplica sua e usá-la à vontade. É errado, até filosoficamente! Quando falamos de consentimento, não é colocar em um contrato de 12 páginas que você libera o uso da sua imagem para sempre, isso é falso. Consentimento é saber o que vai ser feito com sua imagem e concordar com isso.
No evento que discutiu o uso de IA em Hollywood, o negociador do SAG-AFTRA foi efusivo. "Nós vamos lutar contra isso e vamos vencer! Se alguém vai te controlar, sua voz, sua imagem, colocar seu personagem para fazer algo que você não fez, você precisa concordar com aquilo. Não vamos aceitar menos do que isso. Acho que é um bom principio, um fundamento básico, que todo mundo com quem eu converso concorda", resumiu Duncan.
Braço direito da atriz Fran Drescher, atual presidente do sindicato, Crabtree-Ireland usou o exemplo do clássico A Pequena Sereia, da Disney, para comparar os grandes estúdios à vilã Úrsula, que rouba a voz de Ariel por meio de um contrato abusivo. "Essa história não é nova, mas ela deixou o reino da fantasia e virou uma distopia contemporânea. O final feliz é que a sereia ganha sua voz de volta, e é por isso que estamos lutando", reiterou.
E, apesar de a discussão ser sobre o uso de inteligência artificial na TV e no cinema, Cissy Jones ressaltou que a questão também pode virar um problema para pessoas comuns. "Fiquei sabendo do caso de um pai que recebeu a ligação de sua filha, dizendo que tinha sido sequestrada e pedindo o dinheiro do resgate. Os bandidos tinham criado a voz dela por meio de IA, e o pai não percebeu a diferença", contou ela.
"É uma tecnologia sofisticada. Ano passado você precisaria de dez horas de gravação para criar um novo discurso; no começo deste ano, apenas duas horas; agora, qualquer coisa que você já gravou é suficiente. Eu não sou contra a tecnologia, trabalhei no Vale do Silício durante anos e sei o que a tecnologia é capaz de fazer. E ela não vai regredir, só avançar. O que precisamos é ter um assento na mesa de discussão. E isso ainda não ocorreu", continuou ela.
O debate sobre o uso de inteligência artificial está longe de terminar --e mesmo o acordo para encerrar a paralisação dos atores deve gerar uma série de novas questões a serem debatidas nos próximos anos. O acordo que deu fim à greve dos roteiristas, no fim de setembro, não eliminou a ferramenta de vez, mas criou parâmetros para utilizá-la com responsabilidade. É o que os atores buscam --em um modelo de contrato que pode se espalhar para outras categorias profissionais também.
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