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Parada no tempo? Globo explora sertão até o limite e ignora capitais do Nordeste

REPRODUÇÃO/TV GLOBO

Andrea Beltrão caracterizada como Zefa; ela está séria em cena de No Rancho Fundo

Zefa (Andrea Beltrão), a protagonista de No Rancho Fundo; novela é mais uma ambientada no sertão

SABRINA CASTRO

sabrina@noticiasdatv.com

Publicado em 9/6/2024 - 8h10

Atual novela das seis da Globo, No Rancho Fundo faz parte de uma antiga mania da emissora de criar novelas ambientadas em cidades fictícias no sertão nordestino. A semelhança entre as produções, pautadas em terra batida e personagens muitas vezes estereotipados, chegou a virar meme nas redes sociais. Também tem sido alvo de críticas --a trama de Mario Teixeira foi detonada pela caracterização de seus personagens antes mesmo da estreia.

A sensação de que essa abordagem está longe de ser inédita pode ser comprovada com dados. Apesar de as novelas ambientadas no Nordeste representarem uma minoria (apenas 7,7% do total), grande parte delas retrata apenas o interior sertanejo dos nove Estados que compõem a região --o que favorece a ideia de que o local não conta com grandes cidades ainda hoje. Os dados fazem parte de um levantamento exclusivo do Notícias da TV.

Dos 26 folhetins nordestinos produzidos pela Globo na sua história, apenas quatro se passaram em capitais --Verão Vermelho (1970), Final Feliz (1982), Tropicaliente (1994) e Segundo Sol (2018). Verão Vermelho e Segundo Sol foram ambientadas em Salvador, na Bahia; Tropicaliente, em Fortaleza, no Ceará; e Final Feliz entre Fortaleza e Recife, capital de Pernambuco. São as exceções em quase 60 anos de dramaturgia da emissora. 

Outras novelas até tiveram cenas nas capitais do Nordeste; mas, no fim,  foram ambientadas em cidades de outras regiões, como o Rio de Janeiro. Exemplos são Da Cor do Pecado (2004) e Travessia (2022), que tiveram uma fase inicial em São Luís do Maranhão; e Duas Caras (2007) e Geração Brasil (2014), com algumas sequências rodadas no Recife.

No interior do Nordeste

Para além do sertão e das capitais, outras áreas da região já foram apresentadas na TV. A costa litorânea foi mostrada em Porto dos Milagres (2001), ambientada no Recôncavo Baiano, e em Flor do Caribe (2013), cuja cidade fictícia ficava próxima à Natal, capital do Rio Grande do Norte.

As novelas rurais, com suas grandes plantações e disputas por fazendas, também encontraram seu espaço no interior do Nordeste. Ilhéus, na Bahia, deu o tom das duas versões de Gabriela (1977 e 2012), das duas versões de Renascer (1993 e 2024) e de Terra do Sem Fim (1981).

As fictícias Tabacópolis, de O Fim do Mundo (1996), e Santana do Agreste, de Tieta (1989), ficavam no interior da Bahia. Já Asa Branca, de Roque Santeiro (1985), estava localizada em algum local do agreste, mas o Estado nunca foi especificado.

As 11 novelas restantes ocupam o sertão, especialmente da Bahia e de Pernambuco. Em cinco casos, os autores sequer tiveram o trabalho de mencionar um Estado.

A lista é formada por O Bem Amado (1973); as duas versões de Saramandaia (1976 e 2013); Maria, Maria (1978); Pedra Sobre Pedra (1992); Meu Bem Querer (1998); Cordel Encantado (2011); Velho Chico (2016); Onde Nascem os Fortes (2018); Mar do Sertão (2022); e, agora, No Rancho Fundo.

Aliás, vale ressaltar a quantidade de novelas produzidas nessa seara desde o sucesso de Cordel Encantado. O fato de Mar do Sertão ter alcançado bons números também movimentou esse estilo de narrativa, ainda mais em meio à crise na dramaturgia da emissora. Não à toa, No Rancho Fundo é uma continuação da trama de 2022, inclusive recuperando vários personagens.

Apesar de as novelas nas capitais terem ficado no passado, a Globo evoluiu em outro sentido: a representatividade. Nas duas produções mais recentes, ao menos metade do elenco é composta por atores que são de fato da região. É um grande avanço quando comparado com duas décadas atrás. Mas ele veio também através da dor: a emissora foi duramente criticada por causa dos atores escalados para Segundo Sol, novela que mostrou uma Bahia branca.

Identidade cultural em xeque

A presença de artistas nordestinos no elenco, contudo, não impede que as tramas ainda trabalhem com estereótipos. As novelas em si já costumam trabalhar com arquétipos definidos --a mulher em busca de vingança, o miserável que se tornou rico repentinamente, a mocinha injustiçada--, mas, no caso dos nordestinos, esses tipos normalmente são ainda mais cristalizados.

Uma pesquisa dos mestres em comunicação João de Sousa e Rafaela Marcolino, intitulada A Representação da Identidade Regional do Nordeste na Telenovela, ressalta o sujeito bruto, sem instrução e arcaico; tão ingênuo que chega a ser infantil; mas que, apesar de tudo, é bem-humorado. É o caso de Candinho (José Loreto), de Flor do Caribe. Timbó (Enrique Diaz), de Mar do Sertão, também tinha parte dessas características, mas as subvertia ao engabelar até os mais corruptos de Canta Pedra.

O nordestino batalhador que fugiu de uma situação adversa para um "local civilizado" --normalmente, no Sudeste-- também costuma ser bastante abordado, como Maria do Carmo (Susana Vieira) em Senhora do Destino (2004). E há quem fique tão encantado com esse "novo mundo" que passa a ambientar a posição de exótico, como a Chayene (Claudia Abreu) de Cheias de Charme (2012).

Assim como o excesso de ambientações no interior dos Estados, esses tipos bem marcados reforçam o pensamento de que a civilização não faz parte da realidade do povo nordestino. Os personagens da região estão sempre ligados às questões "puras" da raça humana. "É como se esses sujeitos e suas sociedades não passassem por influências dos mercados globais", observam os autores no artigo.

No fim, todas essas práticas direcionam para uma imagem de que no Nordeste só existe o sertão, a terra batida. Um lugar que ainda vive sob as amarras do coronelismo, como era há um século; sem asfalto, universidades, restaurantes, shoppings ou aeroportos.

É claro que, em termos econômicos, é muito mais viável para a emissora gravar no Rio de Janeiro ou em São Paulo, onde não há a necessidade de fazer grandes locomoções com toda a equipe envolvida numa novela. Ou de criar cidades fictícias que são construídas inteiramente dentro dos Estúdios Globo, fazendo uma ou duas viagens com poucos membros do elenco para a região onde a novela é ambientada --foi o caso de Mar do Sertão, por exemplo.

Mas a novela também é um produto artístico e cultural, e reforçar abordagens como essas pode, sim, reforçar pensamentos e atitudes xenofóbicas. É preciso pesar tudo numa balança.


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