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ADEUS AOS VETERANOS

Ex-diretor toca na ferida da Globo e analisa problema escancarado por Murilo Benício

REPRODUÇÃO/INSTAGRAM

Murilo Benício usa uma camiseta preta e óculos de aros também pretos; a barba está longa e grisalha, e ele sorri

Murilo Benício no Que História É Essa, Porchat?; ele recusou papel em novela de última hora

SABRINA CASTRO

sabrina@noticiasdatv.com

Publicado em 31/5/2024 - 6h10

As reviravoltas na escalação de Murilo Benício em Mania de Você representam bem um problema levantado por Pedro Vasconcelos em suas redes sociais. O ex-diretor da Globo, responsável por novelas como Alma Gêmea (2005) e A Força do Querer (2017), falou sobre como a falta de "verdade" impressa por um ator em cena pode acabar com a audiência de uma novela. E, muitas vezes, o fato de não existirem veteranos para auxiliá-los no processo de atuação influencia nesse mau desempenho.

É aí que entra o problema do novo regime de contratos da emissora. Sem os atores de renome, a Globo depende de negociações de valores e de agendas que nem sempre vão para a frente. Com isso, a empresa pode se ver sem nenhum veterano à disposição, deixando novatos perdidos frente ao regime industrial da produção de uma novela.

A emissora ainda tentou apelar, enrolando com as negociações para pressionar os atores a aceitarem os valores e as condições estipuladas. Mas isso não foi o suficiente nem para Murilo Benício, nem para Sérgio Malheiros --que abandonou Família É Tudo também na semana passada, forçando a Globo a correr para encontrar um intérprete para o personagem que caberia a ele.

"Esse modus operandi está muito vinculado ao panorama das séries estadunidenses. Mas aplicar isso nas telenovelas, uma narrativa que vai ao ar diariamente durante nove meses, não é uma estratégia inteligente", analisa Lucas Martins Neia, autor do livro Como a Ficção Televisiva Moldou um País: Uma História Cultural da Telenovela Brasileira, ao Notícias da TV.

Ele admite que o modelo antigo de contratação poderia não ser sustentável no mercado atual, mas pensa que deveria existir outro caminho. Afinal, os profissionais param um ano da vida deles para dedicar à novela, e quem não tem a segurança de um contrato prefere trabalhos mais curtos, que permitam um período de descanso.

"A Globo erra quando vai aplicar esse modelo dentro da sua dramaturgia diária. Deveria existir um novo quadro, longe do modelo antigo dos supersalários, mas pensando nas especificidades de produção da telenovela", argumenta o pesquisador.

Por causa desse novo cenário, a gente vê essa proliferação de novos atores. É uma coisa positiva, mas muitas vezes não há a preocupação de como esses atores vão chegar à tela. Não há um preparo anterior para que eles se sintam seguros de entrarem ali.

O caso Alma Gêmea

Foi esse o ponto tocado por Vasconcelos em uma postagem nas suas redes sociais. O diretor citou como exemplo o personagem José Aristides, de Alma Gêmea, interpretado por André Gonçalves. Quando leu os primeiros roteiros, Vasconcelos entendeu que o personagem exigia um "profissional altamente qualificado na arte da interpretação".

REPRODUÇÃO/TV GLOBO

André Gonçalves como José Aristídes em Alma Gêmea (2005)

André Gonçalves como José em Alma Gêmea (2005)

"Nesse momento, além da novela, você deve pensar na carreira de quem você vai depositar o fardo. Vi muitos amigos e colegas terem suas carreiras destruídas por assumirem responsabilidades que não estavam à sua altura", disse o ex-diretor da Globo.

Segundo Vasconcelos, "a culpa não é do ator ou da atriz, mas de quem o coordena, quem se responsabiliza por uma novela; ou seja, a culpa de uma interpretação aquém da necessidade é do diretor".

De fato: o diretor precisa avaliar o histórico, o talento e a competência de cada ator, além de dar condições para que ele desenvolva o personagem dentro do set. Ele pode dar dicas para a realização da cena, conversar sobre cada papel e promover encontros entre colegas que possam se ajudar.

"A troca entre atores mais velhos e mais novos faz bem para a produção como um todo, e também para aquele ator que está encarando pela primeira vez uma telenovela, que tem um ritmo industrial, mesmo. A pessoa precisa decorar 40 páginas de texto todo dia, e sempre gravando. Ainda tem um período de ensaio muito longo. Eu acho que o Pedro está olhando para todo esse cenário quando ele faz essas afirmações", afirma o pesquisador.

Um exemplo é Taís Araujo, que, no momento em que se sentiu mais perdida durante as gravações de Viver a Vida (2009), buscou apoio em Aracy Balabanian (1940-2023), uma colega mais experiente de cena. Taís já era uma atriz consagrada à essa altura, mas recebeu tantas críticas por sua Helena que teve a confiança abalada, como revelou numa entrevista à revista Piauí.

REPRODUÇÃO/TV GLOBO

Taís Araujo como Helena em Viver a Vida (2009)

Taís Araujo como Helena em Viver a Vida (2009)

"Eu lia as páginas do roteiro sem enxergar nada. Eu não conseguia encontrar a personagem, entrei em desespero", relembrou ela. "Durante essa novela, foi a primeira e única vez na vida em que tomei um porre e, no outro dia, não consegui trabalhar", completou a atriz. Aracy não trabalhou na novela, mas já conhecia Taís de outros trabalhos. Ela a recebia em sua casa todos os dias pela manhã para treinar as falas do roteiro.

O desespero da mulher de Lázaro Ramos em não conseguir "ler" o roteiro é justamente o que afugenta o espectador. "O público sente o que o ator/atriz sente, se conecta emocionalmente com eles. Sem isso, todo o resto não vale de nada. É dinheiro e tempo jogado fora", arrematou Vasconcelos no post.

Problema de 'leitura'

O diretor colocou na conta da "leitura sensível e competente" os sucessos mais estrondosos da emissora, como Guerra dos Sexos (1983), Vale Tudo (1988) e Tieta (1989). Ele cita o trabalhos de grandes atores, como Fernanda Montenegro, Paulo Autran (1922-2007), Beatriz Segall (1986-2018) e Joana Fomm, bem como a direção e o texto dessas novelas.

Os próprios nomes desses atores são um chamariz para a novela, produto classificado como "star system" (sistema de estrelas, em tradução livre). E, nesse sentido, a ausência de veteranos no elenco também pesa. "São os atores e atrizes que chamam a atenção do público para uma novela, então é importante que tenha uma porcentagem significativa de nomes já conhecidos", completa o escritor.

Não à toa, críticas quanto à escalação dos protagonistas de Mania de Você pipocaram na última semana. Internautas classificaram a novela como uma "Malhação no horário nobre", dada a falta de experiência e a pouca idade dos quatro principais nomes.

Gabz, uma das personagens principais, fará sua primeira protagonista de novela; Nicolas Prattes, Chay Suede e Agatha Moreira até apresentam um currículo maior nesse sentido, mas todos têm menos de 35 anos. 

REPRODUÇÃO/INSTAGRAM

Chay Suede, Gabz, Agatha Moreira e Nicolas Prattes, os protagonistas de Mania de Você

Chay Suede, Gabz, Agatha Moreira e Nicolas Prattes

Martins Neia, aliás, vê o fim de Malhação com pesar. Ao acabar com seu "celeiro de talentos", a Globo impediu que o público mais conservador se acostume com novos atores antes de vê-los no horário de maior prestígio da emissora. "É importante tomar esse cuidado. Você pode pensar também na criação de um de um público para o futuro, mas não pode deixar de atender a esse público que está na frente da televisão durante todo esse tempo."

E o que fazer agora?

Entender esse fator, que tem um papel importante na queda de audiência, ganha ainda mais relevância quando se percebe o aumento da concorrência das novelas. Com o advento dos serviços de streaming, o público noveleiro vem sendo atraído por produções turcas e mexicanas, séries norte-americanas e os doramas, obras sul-coreanas que estão no auge de seu sucesso.

Agora, para piorar, os streamings concorrentes estão produzindo as próprias novelas, com atores que se consagraram pela Globo --e perderam seus contratos fixos. Juliana Paes, Grazi Massafera, Camila Queiroz e Camila Pitanga são exemplos.

REPRODUÇÃO/NETFLIX

Juliana Paes em Pedaço de Mim, nova produção da Netflix

Juliana Paes em teaser de produção da Netflix

A Globo, que sempre ocupou um local de destaque no mercado --poucas vezes a emissora se viu confrontada pelas produções do SBT e da Record-- precisa entender o que diferencia suas novelas das demais. Especialmente sem contar mais com seus grandes atores na equação.

Para Lucas Martins Neia, um dos caminhos é olhar para o passado e entender o que fez a telenovela brasileira ser o que é hoje. O "compromisso com a realidade" que essas produções costumam ter é um fator de destaque. "A telenovela brasileira vai se aproximar muito do cotidiano das pessoas, principalmente das grandes cidades. Há essa aproximação com o que está sendo debatido nos jornais", diz.

Eu acho interessante isso de olhar para o passado, não no sentido de estar sempre produzindo remakes, mas sim de entender os modos de produção do passado, de quais vínculos as narrativas criavam com o momento histórico delas. Isso tem se perdido um pouco nos últimos tempos.

Mas isso não pode deixar a emissora presa ao que já fez no passado. Ela deve, sim, testar novas possibilidades e pensar no espectador do futuro, embora tenha de manter o que fidelizou o público do passado. Nesse sentido, Todas as Flores (2022) é um bom exemplo. A novela trouxe de volta a narrativa de amor e vingança, tão tradicional nas novelas, mas testou um novo tipo de veiculação, sem depender da grade fixa da TV aberta.

Pensar em outras linguagens também é possível, rompendo com o realismo e naturalismo exacerbado das tramas mais recentes. Pantanal (2022), por exemplo, trouxe de volta elementos do realismo fantástico --a mulher que se transforma em onça, o velho encantado, o bioma vivo... Narrativas que trabalham o "exagero" também ganharam destaque.

"Precisamos olhar esses conteúdos, entender o sucesso deles e pensar como eles podem ser trabalhados na atualidade, reestabelecendo o vínculo com o público", finaliza Neia.


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