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VISÃO OCIDENTAL

Chibatada e poligamia: O Clone deturpa costumes do povo de Marrocos; entenda

FOTOS: REPRODUÇÃO/TV GLOBO

O personagem Abdul (Sebastião Vasconcelos) clama com as mãos para o alto em cena de O Clone

Sebastião Vasconcelos é Abdul em O Clone; ameaças de chibatadas do conservador são infundadas

SABRINA CASTRO

sabrina@noticiasdatv.com

Publicado em 22/3/2022 - 6h20

Escrita a partir de uma visão ocidental, O Clone (2001) reforça estereótipos ao retratar Marrocos. A novela deturpa temas como a poligamia, uma "ameaça" ao casamento de Latiffa (Leticia Sabatella). A muçulmana morre de medo que Mohamed (Antonio Calloni) arrume uma segunda mulher. Na vida real, porém, o marido precisaria da autorização expressa dela para tomar tal atitude. 

Castigar com chibatadas ou cortar as mãos dos ladrões, punições citadas recorrentemente na trama, nunca fizeram parte do código de leis do país. Muito pelo contrário: Marrocos é um dos países adeptos da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas).

Destacar o que é visto como radical em outra cultura só reforça imagens negativas sobre ela. Claro que a novela precisa de conflitos para andar --afinal, o romance ioiô de Jade (Giovanna Antonelli) e Lucas (Murilo Benício) não perduraria por 221 capítulos sem as supostas proibições culturais e religiosas. Por outro lado, o folhetim também poderia se aprofundar na jornada espiritual islâmica.

"Todo mundo, quando fala sobre o islã, pensa em uma religião horrível, cheia de proibições. A novela reforça essa imagem. Em vez disso, eles poderiam abordar o ramadã [mês sagrado em que os muçulmanos jejuam do nascer ao pôr do sol] e as festas islâmicas, marcadores da vida do muçulmano. Assim, a gente veria uma realidade mais próxima", explica Fabiola Oliveira, influenciadora digital brasileira e muçulmana para o Notícias da TV.

Latiffa (Letícia Sabatella) com os olhos arregalados em cena de O Clone

Latiffa teme que o marido se case novamente

O folhetim de Gloria Perez não é o único. A maioria das obras ocidentais que retratam o Oriente Médio segue a mesma fórmula. De um lado, as dançarinas do ventre, que codificam a cultura como exótica. De outro, o véu como o símbolo máximo da opressão. 

É o que Amira Jarmakani aborda no livro Imagining Arab Womanhood (Imaginando a Feminilidade Árabe, em tradução livre). Na obra, a escritora ressalta que o véu e as dançarinas do ventre são mitologias culturais. Essas generalizações "roubam" as experiências das mulheres árabes e/ou muçulmanas, uma vez que se disfarçam como retratos reais.

Até o contexto histórico e geográfico destas mulheres é desprezado. As produções misturam as leis e os costumes dos diversos países do Oriente Médio. As chibatadas, por exemplo, acontecem no Irã e na Arábia Saudita. A imposição do véu, também. Nem a dança do ventre é marroquina, e, sim, parte da cultura do Egito e da Turquia. 

Para driblar os preconceitos, a solução é simples: trazer quem vive aquela cultura para trás das câmeras, na concepção do projeto. A equipe de gravações até contou com a assessoria dos irmãos marroquinos Karima e Ahmed Elmaataoui, que acabaram incorporados ao elenco como serviçais de Ali (Stênio Garcia). A dupla, porém, não ocupou nenhuma posição de destaque na equipe criativa.

Gloria Perez ainda se consultou com os xeques Jihad Hassan Hammadeh, então vice-presidente da World Assembly of Muslim Youth, e Abdelbagi Sidahmed Osman, sudanês presidente da Sociedade Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro, para assuntos referentes a religião. Nenhum deles é marroquino.

Crimes e proibições

Apesar de as leis de Marrocos serem mais brandas que em outros países, alguns detalhes se assemelham ao que é exposto no folhetim. O adultério realmente é ilegal. O código penal de Marrocos prevê penas de até dois anos de prisão para quem cometer "crimes contra a boa ordem da família".

A homossexualidade também é criminalizada, com até três anos de prisão. Só em 2017, 2.890 marroquinos foram indiciados, segundo o relatório anual do Ministério Público de Marrocos. 

Por fim, o ramadã também é previsto em lei. Quem comer em público durante o período de jejum pode ser preso. A proibição, porém, está sendo questionada. Em 2009, o Movimento Alternativo pelas Liberdades Individuais organizou um piquenique em protesto durante o período. A maioria da opinião pública reprovou a atitude. 

De lá para cá, muita coisa mudou. Para se ter ideia, donas de casa marroquinas inundaram as redes sociais com vídeos de suas rotinas. Antes, só a exposição de fotos na internet era mal vista. Até a foto de perfil costumava ser um registro aleatório, de animais ou objetos. 

"Marrocos se transforma muito. Questões da sociedade, tradição, cultura. Tudo muda o tempo todo, de um ano para o outro", explica a professora Zahra Elouali, marroquina residente no Brasil, em entrevista ao Notícias da TV.

Hoje, a professora enxerga a juventude de Marrocos como dividida em dois extremos: de um lado, os mais liberais, adeptos as novidades do Ocidente. De outro, os que temem que o país perca as tradições e costumes.

Carreira das mulheres

Em O Clone, Abdul (Sebastião Vasconcelos) costuma dizer que "boas mulheres" são aquelas que ficam em casa, cozinhando um bom carneiro para os maridos. Mas essa dinâmica mudou. 

"Boa esposa é a que consegue ajudar o marido financeiramente. A sociedade mudou muito, os custos são altos. Os homens não conseguem manter a casa sozinhos. A mulher tem que ter uma profissão. Aliás, mulheres com carreira se casam mais que as donas de casa", destaca Zahra. 

Essa parceria entre cônjuges é recente. O marido só perdeu a responsabilidade total pelo sustento da família em 2004, com uma reforma no Código Civil. Com isso, a mulher passou a ter as mesmas obrigações do homem --e, consequentemente, as mesmas exigências em relação à escolaridade.

Mesmo assim, o analfabetismo é maior entre as mulheres. Mas mudanças estão acontecendo. A professora lembra que, em meados dos anos 2000, inspetores passavam pelas casas para assegurar que as crianças --meninos e meninas-- estavam matriculadas na escola. 

Casamento forçado

Legalmente, a opinião da mulher sobre seu próprio destino só começou a valer em 1992. Até então, os casamentos forçados tinham amparo da lei. Pressionado pela população, o rei Hassan 2º (1929-1999) assinou um decreto que exigia o consentimento das mulheres ao matrimônio. Mesmo antes disso, porém, elas costumavam dar a palavra final sobre seus pretendentes na maioria das famílias.

Ou seja: o casamento de Jade e Said (Dalton Vigh) poderia acontecer, mesmo contra a vontade dela. Afinal, a primeira fase da novela se passava nos anos 1980. O calvário do casal protagonista, então, até que faz sentido.

Jade (Giovanna Antonelli) e Lucas (Murilo Benício) em O Clone

Jade e Lucas sofrem para engatar romance

Já Khadija (Carla Diaz) não seria um entrave ao romance. Até 2004, se os pais se divorciassem, as crianças ficavam apenas com a família da mulher. Se a mãe não tivesse condições de criar o filho, a guarda iria para algum parente dela --nunca para o pai. A reforma do Código Civil transferiu a responsabilidade também para os homens.

Desde então, as mulheres receberam o direito de entrar com os processos de divórcio --antes reservado aos homens. A Justiça também começou a mediar os casos de poligamia. Como já mencionado, as cônjuges precisam testemunhar, em frente a um juiz, que aceitam que o marido se case com outra. O que já era raro, ficou mais ainda. 

"A mulher só assina [a autorização] quando não deseja manter uma relação amorosa, mas não quer jogar fora a história que construiu com o marido. Também acontece quando ela não consegue engravidar e, em conjunto, eles combinam. Se o homem casar com mais de uma esposa, tem que ser justo. Tudo que dá para uma mulher, tem que dar para outra. Acaba sendo difícil, tem que ter uma condição financeira boa", destaca Zahra.

O casamento entre mulheres muçulmanas e homens não muçulmanos, como Jade e Lucas, é proibido pelo Alcorão. Na interpretação de Fabiola, é uma forma de assegurar que os direitos das mulheres, citados no livro sagrado, sejam respeitados.

Por sua vez, o dote é uma prática religiosa e ainda acontece. Na maioria dos casos, o valor é simbólico. "Já aconteceu de um homem estar economizando e chegar outra pessoa, com mais dinheiro, e casar com a pretendente. Com o tempo, muita gente começou a questionar essa ação", declara Zahra.

Imposição do véu

Na novela, Samira (Sthefany Brito) está em um impasse. Criada no Brasil, a mocinha não deseja usar o véu islâmico. O pai, porém, exige que ela cubra os cabelos assim que sua menstruação descer. Por isso, ela esconde que já passou pela menarca (a primeira menstruação). 

O uso do véu, porém, não deveria ser imposto. Isso esvazia toda a importância do acessório religioso. Significado que, aliás, não tem nada a ver com "manter a beleza apenas para o marido", como dito na novela.

Para Fabiola e Zahra, o véu é um ato espiritual: quando uma mulher escolhe usá-lo, ela consolida sua relação com Alá. Por outro lado, a vestimenta também pode servir como marcador cultural.

Samira (Sthefany Brito) se recusa a usar o véu em O Clone

Samira se recusa a usar véu em O Clone

"A Samira está tentando não ser o patinho feio. O lenço não é bem-visto na sociedade brasileira. Ele é visto como opressão, remete a algo muito ruim e ninguém quer estar associado diretamente a isso. Samira morre de vergonha das raízes dela, mas justamente porque a sociedade não celebra a diversidade", diz a influenciadora.

Aliás, o véu não é tão comum em Marrocos quanto aparenta na novela. A própria Zahra optou por não utilizá-lo --com exceção das mesquitas e velórios, em que o uso é sinal de respeito. Aderir à vestimenta também não tem relação com a menarca. A mulher pode optar por cobrir o cabelo quando quiser.

Se o lenço não é tão comum, o niqab --vestimenta que deixa apenas os olhos expostos--, é menos ainda. As burcas chegam a ser encaradas com maus olhos. "Se andar [de niqab ou burca], a polícia pede para tirar, para ver se realmente é uma mulher ou se é um criminoso. As pessoas têm preconceito, porque muita gente usou as roupas para se esconder e atacar o país", destaca a professora.

O Clone (2001) substituiu Ti Ti Ti no Vale a Pena Ver de Novo. A novela de Gloria Perez foi originalmente exibida na faixa nobre da Globo e reprisada em 2011 na sessão vespertina da emissora.


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