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KELVIN E RAMIRO

Antes de beijo, Globo usou 'estratégia' para emplacar casal gay em Terra e Paixão

FOTOS: REPRODUÇÃO/TV GLOBO

Diego Martins, o Kelvin, está sorridente e abraçado ao pescoço de Amaury Lorenzo, o Ramiro, que dá um sorriso constrangido em cena de Terra e Paixão

Kelvin (Diego Martins) e Ramiro (Diego Martins) em Terra e Paixão; casal enfrentou críticas

SABRINA CASTRO

sabrina@noticiasdatv.com

Publicado em 26/12/2023 - 6h10

Kelvin (Diego Martins) e Ramiro (Amaury Lorenzo) protagonizaram o beijo gay mais intenso e duradouro da TV brasileira, mas o caminho para chegarem a esse ponto foi árduo. Num ano em que a Globo cortou cinco cenas de beijos lésbicos e escanteou ao menos três personagens LGBTQIA+, o fato de uma cena ir ao ar depende de uma única coisa: a torcida do público para esses personagens. Daí, vem a grande questão: como um matador brutamontes e um ex-garçom trambiqueiro viraram os "namoradinhos do Brasil"?

Parte disso diz respeito à construção dos personagens. Walcyr Carrasco, então o único autor titular da novela das nove, optou por um caminho que é bastante conhecido em suas obras: criar personagens "rasos". De maneira geral, eles não têm grandes motivações ou contradições internas. Podem ser definidos por poucas palavras, o que facilita a compreensão do público, fazendo com que ele aceite a trama mais rapidamente.

Ramiro, basicamente, era um "matador sensível". Kelvin vem na esteira de vários outros personagens LGBTQIA+: estridente, bem-humorado e cheio de bordões. Essa última, aliás, é uma representação comum para personagens gays nas novelas e em outras produções. Crô (Marcelo Serrado), de Fina Estampa (2011), e até Zaquieu (Silvero Pereira), de Pantanal (2022), se encontraram nesse rótulo. Todos eles apaixonados por brutamontes que não os correspondiam.

"A representação estereotipada de personagens não heterossexuais é uma fuga da norma hétero, de tudo o que é historicamente consolidado do que seria ser hétero", explica Lucas Martins Néia, autor de uma tese sobre a história de telenovelas pela ECA-USP (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo). Assim, esses personagens não são lidos como "pessoas normais", mas sim na esfera do ridículo.

Para o estudioso, a ideia é tornar aquele personagem mais "palatável" --ainda mais em tempos nos quais o conservadorismo está em alta. "Essa figura do personagem gay que está ali como uma válvula de escape, mas não tem uma história propriamente dita, se perpetua também porque serve como um conforto para a heteronormatividade, que segue guiando a construção das narrativas", arremata o pesquisador.

Mas, assim como Félix (Mateus Solano) em Amor à Vida (2013), os dois membros do casal de Terra e Paixão foram ganhando nuances. Ramiro desenvolveu um baita conflito interno: assumir seus sentimentos por Kelvin e perder o respeito de seus pares e o que considerava ser sua "macheza", ou ignorar sua paixão, mas se torturar e sofrer por isso? 

Kelvin, por sua vez, se mostrou empático com o amado. Deu tempo para que ele reconhecesse seus sentimentos, mas também fez Ramiro perceber que não havia problemas em gostar de outro homem. Acima de tudo, ajudou o jagunço a sair da obediência cega a Antônio (Tony Ramos) e começou a guiá-lo no caminho rumo à redenção.

O personagem de Diego Martins também trouxe debates importantes à tona, tanto como forma de aprofundar o próprio personagem quanto para aumentar as discussões sociais da novela.

Com Ramiro, o ex-garçom conversou sobre casamento homoafetivo, homofobia e as diferentes constituições de família. Todos os tópicos vieram à tona quando o casal começou a ser apontado por seguir estereótipos.

Pombinhos também foram criticados

Embora a estratégia de construir personagens mais "rasos" possa facilitar a recepção de determinada parte dos espectadores, ela também acende um alerta vermelho em outro setor.

De um lado, está o "público do sofá" --termo usado pelos internautas para definir as pessoas que acompanham a novela de maneira mais "passiva"; ou seja, espectadores que assistem à novela e torcem para seus personagens favoritos, sem se deixar levar pela polarização entre os conservadores e liberais. Ele são os que costumam "cair" na estratégia dos personagens rasos.

Os conservadores mais convictos vão rejeitar casais gays de qualquer maneira. E os liberais convictos perceberão que aqueles personagens estão sendo "reduzidos" e, muitas vezes, reproduzindo estereótipos prejudiciais para a causa. Um exemplo nítido disso é a sexualização da mulher negra, ou o fato de personagens gays não terem família nem passado; normalmente, sua única função é endeusar um outro personagem --hétero, claro.

Kelvin (Diego Martins) e Ramiro (Amaury Lorenzo) em Terra e Paixão

Kelvin e Ramiro em cena de Terra e Paixão

No início, a paixão de Kelvin e Ramiro foi lida por essa perspectiva. O X, antigo Twitter, pipocou de críticas nesse sentido. A que mais viralizou foi a do jornalista Henrique Haddefinir: "O assassino da novela e o gay afeminado que ele sempre fantasia como uma mulher. Vamos celebrar!", ironizou.

A história chegou ao próprio Diego Martins, que citou as conversas promovidas por seu personagem para apaziguar a questão. "Entendo tanto o seu ponto, mas discordo bastante. Já fizemos cenas tão lindas, que discutem tanta coisa interessante. Já falamos sobre casamento homoafetivo, já falamos sobre família e suas diferentes formas de ser e de constituir. Já falamos de amor e de descobrir o amor", começou ele.

Eu falo com propriedade porque eu morreria de vergonha de ser apenas um alívio cômico para hétero. No quesito de narrativas gays, a TV brasileira engatinha ainda, o que é uma pena. É tudo realmente muito devagar, mas vejo onde as discussões --que não são nada vazias-- chegam nas pessoas. Esse papel de ser o alívio cômico sem função alguma eu não passo.

Por outro lado, é claro que a Globo optou por desenvolver o casal com cautela. Afinal, casais gays que tinham uma relação emocional e física mais direta desde o início da trama não foram aceitos pelo público. Silvio de Abreu e Gilberto Braga (1945-2021) tentaram fazer isso em Torre de Babel (1998) e Babilônia (2015) e foram acusados de ter "forçado demais a barra".

Lucas Martins Néia remonta a década de 1970 para explicar o conceito de "gay mágico" --personagens tão cheios de afetação e sem nenhuma história que servem apenas como alívio cômico de uma novela.  

Vários personagens da dramaturgia vieram nessa seara: Everaldo (Renato Pedrosa), de Dancin' Days (1978); Zé Luís (Miguel Falabella), em Mico Preto (1990); Uálber (Diogo Vilela) e Edilberto (Luiz Carlos Tourinho), em Suave Veneno (1999); Visky (Rainer Cadete), em Verdades Secretas (2015)...

O pesquisador, no entanto, acredita que o casal rural não pode ser limitado a isso. Aliás, a própria existência de personagens gays "afeminados" não pode se limitar a isso. É preciso entender até que ponto as críticas pelo fato de o personagem ser estereotipado não são também uma forma de preconceito contra quem não deseja se enquadrar nos padrões heteronormativos. 

"A grande questão nesse sentido é a gente observar a construção narrativa e a construção cênica desses personagens, para a gente ver se a gente está rindo com eles ou rindo deles. Aí reside a diferença. Diz respeito à forma como a direção planeja a encenação dessas cenas e também à construção dos atores. É um fenômeno multidimensional. Muitas vezes, o que está de uma forma no papel pode ganhar outras nuances na representação", afirma.

Globo dá a volta por cima

Seja como for, Kelmiro --nome da torcida dada aos dois personagens-- conseguiu fazer a Globo sair de 2023 por cima no quesito causa LGBTQIA+. E olha que foi um ano árduo. Helena (Priscila Sztejnman) e Clara (Regiane Alves) sofreram com cortes em Vai na Fé (2023) --o beijo das duas só saiu após muitas reclamações e pressão dos internautas.

Já o bissexual Érico (Carmo Dalla Vecchia), em Amor Perfeito (2023), trocou altos beijos com Verônica (Ana Cecilia Costa), parte do triângulo amoroso do qual ele fazia parte, mas sequer deu um selinho no pretendente homem, Romeu (Domingos de Alcantara). O intérprete fez até um protesto velado ao publicar um vídeo beijando o colega de cena nas redes sociais.

Clara (Regiane Alves) e Helena (Priscila Stezjnmann) em Vai na Fé

Clara recebe afago de Helena em Vai na Fé

A edição especial para TV aberta de Aruanas seguiu o mesmo caminho: todas as cenas mais quentes entre Olga (Camila Pitanga) e Ivona (Elisa Volpatto) foram removidas. A própria Terra e Paixão escanteou um casal lésbico. Renata Gaspar, intérprete de Mara, veio a público reclamar sobre a pouca atenção dada ao casal formado entre a personagem dela e Menah (Camilla Damião).

Mas o efeito Kelmiro fez tudo isso ficar para trás. Para se ter ideia, a novela bateu seu recorde de audiência no dia em que Kelvin pediu Ramiro em namoro --foram 30,8 pontos na Grande São Paulo. A cena veio um dia antes do beijo, que alçou "Kelmiro" para os tópicos mais comentados do X.

Um dos aspectos mais elogiados foi o fato de o beijo não ter sido um simples selinho, como no caso de Félix e Nico (Thiago Fragoso), dentre tantos outros casais LGBTQIA+ da teledramaturgia.

O fato é que a Globo está numa grande sinuca de bico. Dividida entre evitar o boicote dos conservadores, conquistar o "sofá" e agradar aos defensores da causa LGBTQIA+, a emissora precisa seguir estratégias e fazer concessões. Ela só precisa ter muito cuidado para não ficar para trás --um risco bem alto, considerando o jeito mais aberto com que outros produtos audiovisuais, especialmente no streaming, costumam abordar a sexualidade.

"Se a telenovela não prestar atenção nas demandas desses grupos sociais --de diversos lados, não só do movimento negro e do LGBTQIA+--, ela pode acabar ficando para trás. Porque me parece que as emissoras estão privilegiando um público que hoje está na frente da TV, mas não estão pensando no público que no futuro estará na frente da TV. A gente também vive uma dualidade nesse sentido", finaliza Martins Néia.


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