SABÁ DAS FEITICEIRAS
FOTOS: DIVULGAÇÃO/NETFLIX
Hannah Miller (Olivia Scott Welch), uma das bruxas de Rua do Medo: trilogia revê imagem das feiticeiras
A Netflix enfeitiçou o público nas últimas três semanas com o mistério em torno da bruxa Sarah Fiar (Elizabeth Scope), anunciada como a principal antagonista da trilogia Rua do Medo. Se a megera tocou o terror na primeira produção, uma virada no segundo filme já tinha deixado claro que o "diabo" não era tão feio quando se pensava --numa tendência que tem salvado cada vez mais feiticeiras ficcionais das fogueiras da Inquisição.
Sarah, sem dúvida, não teria a mesma sorte há duas décadas, em que seria exemplarmente castigada por invocar forças sobrenaturais como as quatro protagonistas de Jovens Bruxas (1996) ou habitaria uma floresta amaldiçoada pelo resto da eternidade como A Bruxa de Blair (1999).
Rua do Medo, na verdade, está bem longe de representar uma virada na forma como o mainstream enxerga a mulher envolvida com magia, mas traduz para um espectador mais jovem --e com menos referências-- um processo que ganhou mais força a partir de A Bruxa (2015).
O longa-metragem de Robert Eggers colocava em dúvida a todo momento se Thomasin (Anya Taylor-Joy) realmente tinha feito um pacto com o diabo ou se essa desconfiança era fruto dos preconceitos e histerias dos puritanos norte-americanos no século 17.
Essa é uma mudança que começou fora das telas com estudos como os da italiana Silvia Federici, que mergulha na Santa Inquisição para entender o porquê de a Igreja e os senhores feudais criarem essa figura da bruxa como uma vilã.
Kiana Madeira: um dia na pele de Sarah Fier
A escritora, em linhas gerais, aponta que as mulheres que foram parar na fogueira eram justamente aquelas que desafiavam o poder, seja porque tinham acesso à terra e não cediam às ameaças de fome ou então porque tinham o conhecimento sobre ervas anticoncepcionais e abortivas que lhe davam o controle sobre o próprio corpo.
Esse desafio às instituições que se tornariam base do capitalismo durante séculos é representado em Rua do Medo por meio da relação homossexual entre Sarah e a vizinha Hannah Miller (Olivia Scott Welch). Esse fator é mais perigoso e ameaçador para a sociedade puritana do que o próprio pacto com o diabo firmado por Salomon Goode (Ashley Zukerman).
Rua do Medo, óbvio, cria essa trama não pela intenção de provocar ou instigar uma discussão junto ao público, mas principalmente para atender uma pressão por representatividade cada vez mais frequente. A Netflix se aproveita desse verniz "descolado" para fazer lucro em cima de um dos episódios mais sinistros da humanidade --sem necessariamente questioná-lo.
Essa aceno "vazio" fica ainda mais claro pela preguiça na reconstituição de um tribunal das bruxas na história, que parece fruto unicamente da histeria dos moradores do vilarejo. A Inquisição, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, era claramente um aparato repressor do estado.
O julgamento de feiticeiras era muito mais burocrático e menos emocionante, como pode ser comprovado pelos relatos colhidos pela jornalista Stacy Schiff ao reconstituir os acontecimentos de Salém no livro-reportagem As Bruxas. Silenciadas (2020), também na Netflix, traz uma visão um pouco mais acertada sobre esse processo histórico.
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