OPINIÃO
REPRODUÇÃO/YOUTUBE
Astrud Gilberto cantou Girl from Ipanema em 1964; Já em 2021, Anitta lança o clipe Girl from Rio
O clipe de Girl from Rio, de Anitta, já tem cerca de 30 milhões de visualizações, o que catapultou ainda mais a carreira internacional da artista carioca de Honório Gurgel. Mas o que pouca gente sabe é que a mulher que tornou o hit que inspira a música de Anitta conhecido em todo o mundo hoje está esquecida pelo Brasil ingrato com seus grandes artistas.
No hit lançado neste ano, Anitta bebe da fonte chamada Garota de Ipanema, canção pela qual a música brasileira é conhecida internacionalmente até os dias de hoje, seis décadas após a composição original.
Anitta usa o passado da música e seu imaginário coletivo para trazer novo sentido à canção no presente, deslocando a musa carioca da idílica Ipanema na zona sul carioca na década de 1960 para o efervescente e lascivo subúrbio carioca nos tempos atuais, do qual ela é a representante de maior sucesso.
Mais de meio século antes de Girl from Rio, foi a doce voz da então jovem baiana Astrud Gilberto que encantou o mundo em 1964 com Girl from Ipanema, cantada por ela no disco Getz/Gilberto, que reuniu seu então marido, João Gilberto (1931-2019), à lenda do saxofone do jazz Stan Getz (1927-1991). A gravação lendária, eleita a melhor daquele ano nos Estados Unidos, tornou a bossa nova conhecida e respeitada no mundo inteiro.
A despretensiosa interpretação de Astrud para a canção composta por Tom Jobim (1927-1994) e Vinicius de Moraes (1913-1980), inspirados pela beleza da jovem Helô Pinheiro --hoje a mãe de Ticiane Pinheiro e avó de Rafaella Justus-- rumo à praia de Ipanema, logo tornou-se um fenômeno mundial. A música alcançou as paradas de sucesso e o topo da lista de execução nas rádios (e elevadores e halls) mundiais.
Apesar desses feitos, atualmente, no desmemoriado Brasil, pouca gente sabe quem é Astrud Gilberto. A começar pela maioria dos fãs da própria Anitta.
reprodução/instagram
João Gilberto e Astrud Gilberto
Astrud cantou Girl from Ipanema no disco Getz/Gilberto por um mero acaso da vida e contra a vontade do próprio marido, que não queria ver a mulher aparecendo mais que ele em seu disco internacional.
Quem deu força para a tímida moça baiana tornar-se uma das intérpretes femininas do jazz foi Getz e o produtor Creed Taylor, que consideraram que uma voz feminina na versão em inglês de Garota de Ipanema seria mais palatável aos ouvidos norte-americanos e planetários, do que João Gilberto cantando em português.
E os dois estavam cobertos de razão. Assim, Astrud Gilberto, até então uma cantora mais de apartamento do que de palco --ela começou a carreira artística nas rodas de bossa nova no apartamento de Nara Leão, na avenida Atlântica, de quem era vizinha e melhor amiga-- tornou-se uma febre mundial.
Astrud até gravou um clipe com Getz que fez muito sucesso na TV na década de 1960, isso bem antes de existir MTV ou YouTube. E, certamente, na época o clipe foi visto por mais que os atuais 30 milhões de Girl from Rio de Anitta.
E Astrud pagou um preço caro pelo sucesso que fez. Meses após o estouro de Girl from Ipanema em sua voz, seu casamento com João Gilberto chegou ao fim, restando apenas seu fruto Marcelo, que ficou sob cuidados da mãe.
Mas, Astrud, destemida, seguiu em frente e, inclusive, gravou seu próprio disco com Stan Getz em 1964, pela mesma lendária gravadora Verve: Astrud Gilberto e Stan Getz. Depois, lançou uma sequência de álbuns solo, já dona de seu próprio destino e carreira, precursora do caminho que hoje Anitta trilha.
O Brasil presta pouco tributo ao pioneirismo de Astrud, nome crucial na internacionalização da música brasileira. E isso se dá pelo machismo, presente inclusive na imprensa nacional, que nunca deu o valor devido ao feito de Astrudinha, como era chamada por Vinicius de Moraes.
Contudo, se por aqui fazem pouco caso dela, Astrud Gilberto é reverenciada como grande estrela do jazz nos Estados Unidos. Inclusive, foi indicada para o Hall da Fama Internacional Latino do Jazz em 2002; em 2008, recebeu o Grammy Latino pelo conjunto da obra.
Anitta, artista que tem entre suas marcas a defesa do empoderamento feminino, poderia render mais homenagens a Astrud Gilberto. E fazer seus fãs conhecerem quem foi esta grande artista pioneira. Afinal, Astrud foi a primeira cantora brasileira após Carmen Miranda (1909-1955) a conquistar o mundo, obsessão atual de Anitta.
Astrud conseguiu sair detrás da fama do marido e se converteu ela própria em uma estrela, independentemente de homem. Anitta até fez um tímido tuíte para lembrar que seu novo hit tem dona: "Foi com essa versão de 1964 que a música Garota de Ipanema se tornou The Girl from Ipanema e começou a se tornar um sucesso mundial", postou na rede social, compartilhando um vídeo com Astrud cantando na TV norte americana.
The song recorded in Astrud Gilberto's voice and Stan Getz on sax is part of an album that introduced bossa nova to the world at a time when it was already in decline in Brazil.
— Anitta (@Anitta) April 2, 2021
Mas, Anitta poderia ser mais generosa e dar ainda mais destaque a Astrud Gilberto neste momento atual, até porque o Brasil praticamente ignorou os 80 anos de Astrud, completados em 2020. Hoje, Astrud está com 81 anos e vive na Filadélfia, nos Estados Unidos.
Enquanto isso, no Brasil, pouca gente conhece o que a baiana de Salvador representa para a música brasileira no mundo. Anitta perdeu a chance de reavivar tal memória e a cravar a importância de Astrud Gilberto na cabeça das novas gerações. Isso, sim, seria um grande feito.
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MIGUEL ARCANJO PRADO é jornalista pela UFMG, pós-graduado em Mídia, Informação e Cultura pela ECA-USP e mestre em Artes pela Unesp. É crítico da APCA, criador do Prêmio Arcanjo de Cultura e coordena a Extensão Cultural da SP Escola de Teatro. Passou por Globo, Abril, Folha, Record, Band e UOL. Clique para ver mais textos do Miguel e conheça também o Blog do Arcanjo
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