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MAIS REPRESENTATIVIDADE

Narradores negros lutam para reduzir 'mar branco' nos canais esportivos

REPRODUÇÃO/SBT

Imagem do narrador Luiz Alano, em transmissão do SBT

Luiz Alano, em transmissão do SBT; locutor foi o primeiro negro a narrar um jogo de libertadores na TV aberta

RICARDO MAGATTI

ricardo@noticiasdatv.com

Publicado em 20/11/2020 - 7h00
Atualizado em 20/11/2020 - 16h11

Os telespectadores que ligam a televisão para assistir a programas esportivos ou a jogos do seu time de futebol veem poucos profissionais negros nos principais canais, especialmente na TV aberta. Essa realidade, no entanto, vem mudando a partir da presença ainda pequena, mas marcante, de narradores, comentaristas, apresentadores e repórteres afrodescendentes em frente às câmeras.

O Notícias da TV conversou com os narradores Luiz Alano e Julio Oliveira e os comentaristas de arbitragem Paulo César de Oliveira e Márcio Chagas para discutir a questão racial nas emissoras esportivas. Todos foram unânimes em dizer que ainda existe pouco espaço para o negro nos grupos de comunicação e em tantos outros segmentos. No entanto, também apontaram que há um avanço em relação ao passado e que a tendência é de que mais profissionais ganhem oportunidades no futuro, gradualmente.

Há cerca de um ano, pouco antes de ser celebrado o Dia da Consciência Negra, Julio Oliveira fez uma publicação em suas redes sociais para esbravejar contra um caso de racismo sofrido pelo jogador brasileiro Taison, na Ucrânia, e aproveitou a ocasião para reclamar da ausência de negros discutindo o assunto nas bancadas dos programas esportivos. Ele foi ouvido e chamado para participar do Redação SporTV. 

No programa, incomodado com brancos discutindo temas de negros, o jornalista chamou a atenção para o "mar branco" nas redações. Suas declarações contundentes ecoaram e foram importantes para provocar mudanças internas, de modo que mais profissionais negros ganharam espaço no SporTV. Além disso, hoje, no Grupo Globo, há o coletivo Diáspora, criado em 2017 com o objetivo de, sobretudo, promover a diversidade na empresa. 

"O 'nosso quintal' foi revolucionado. Fico feliz por ter sido parte disso. A primeira mudança foi a participação de alguns companheiros negros que já tinham a vontade de ocupar o espaço no vídeo e a empresa entendeu que era o momento. São passos curtos, mas significativos", relata o narrador do SporTV e Premiere.

Natural de Londrina, o locutor de 55 anos reconhece que houve uma evolução em relação à diversidade nos canais esportivos e nas empresas em geral, mas sabe que o caminho para a redução dessa igualdade racial ainda é longo. Na visão dele, "a mudança tem de ser gradativa para ser sólida". Exemplo de que o percurso é longo é que colaboradores negros ocupam apenas 6,3% de cargos de gerência em grandes empresas, como Ambev e Petrobras, segundo estudo divulgado pela Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial.

REPRODUÇÃO/INSTAGRAM

Julio Oliveira e Grafite, no SporTV

Isso em um país em que os negros são 56,1% da população, segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE. Dos 209,2 milhões de habitantes do Brasil, 19,2 milhões se declaram pretos, enquanto 89,7 milhões se dizem ser pardos.

"É um processo gradual porque existe uma diferença histórica. Você não muda tudo em dois, três ou cinco anos. É preciso que existam ações que comecem o processo de mudança. Daqui um ano a gente não vai ter 90 negros e 110 brancos na empresa. Não é assim. Primeiro é preciso criar consciência de que essa diferença existe para depois criar um projeto de mudança. Então a empresa, o nosso quintal, vem mudando e vem seguindo esse caminho", avalia.

Julio tem mais de 40 anos de carreira, entre a trajetória no rádio e televisão, e está desde 2012 no Grupo Globo. "Há outros projetos de inserir mais negros, de buscar mais vagas em projetos de trainee, estágio. No futuro, a gente vai ter um quadro bem diferente, mas o importante é isso: primeiro entender que essa diferença existe, para depois você criar consciência e trabalhar em um projeto de mudança", acrescenta.

Quebrando tabu

Se nos canais pagos é difícil encontrar profissionais que não sejam brancos em frente às câmeras, na TV aberta isso é ainda mais raro. Acostumado a ser o único negro ou um dos poucos em vários ambientes, Luiz Alano é a exceção dessa regra.

No SBT, o narrador, de 43 anos, quebrou um tabu incômodo ao se tornar o primeiro negro a narrar uma partida da Libertadores da América em TV aberta. "Os grupos de comunicação não são diferentes de qualquer outro ramo profissional. É um reflexo absolutamente fiel e fidedigno da sociedade brasileira", pontua o profissional, que trabalhou por 15 anos no Grupo Globo.

O jornalista foi contratado no SBT para comandar as transmissões de quatro partidas da fase de grupos e recebeu elogios pelo seu trabalho na emissora de Silvio Santos. "Foi um sentimento de muito orgulho. Fiquei até assustado por ter essa representatividade. Quando me falaram isso de que tinha sido o primeiro negro em narrar Libertadores na TV aberta me deu uma alegria maior em representar muita gente", destaca.

Ele considera que há hoje mais abertura para discutir o racismo estrutural e que a autoestima do negro está melhor em ver seus pares fazendo sucesso e tendo mais espaço na TV e em outros ambientes. 

"Eu acredito que a criminalização do racismo, a abertura de cotas nas universidades, esse debate contínuo na sociedade são coisas que têm melhorado a autoestima do negro e colocado a sociedade contra a parede para que se abra espaço a profissionais negros, não só não comunicação", reflete.

REPRODUÇÃO/INSTAGRAM

Luiz Alano em transmissão no Maracanã

O catarinense, natural de Tubarão, diz que nunca recebeu ofensas raciais, mas, ao mesmo tempo, é vítima de um sistema racista que dificulta a ascensão do negro. No seu caso, no começo de sua carreira, quando se apresentou para narrar um jogo em uma rádio gaúcha, foi orientado pelo seu chefe a não reagir contra possíveis xingamentos por conta de sua raça. Também passou por outras situações constrangedoras e que reforçam como os negros são tratados de maneira diferente.

"Um dia estava aguardando meu filho sair da creche, dentro do carro, e a polícia chegou e me abordou porque eu era um suspeito, sendo o único pai negro ali naquele momento. São situações que a gente vive no dia a dia", lamenta.

Referências

Hoje, Julio e Alano, com o sucesso de seus trabalhos e o discurso firme contra a discriminação racial, viraram referência para jovens negros também tentarem ingressar nesse concorrido mercado de narradores e profissionais da comunicação na TV. Além deles, há outros nomes de destaques atualmente, como o comentarista Grafite e a apresentadora Karine Alves, ambos do SporTV, e o experiente narrador Cledi Oliveira, dos canais ESPN.

"Eu, o Julio e outros profissionais temos uma responsabilidade muito grande. Eu recebi centenas de mensagens de colegas negros, jovens, estudantes, que falaram que eu sou um espelho para eles, que querem chegar onde cheguei. Isso me deixou muito contente, mas me deu uma responsabilidade muito grande", conta Alano, que também narra partidas para as plataformas DAZN e One Football.

"A gente acaba se acostumando a nos apoiar, criamos uma comunidade de pensamento positivo entre nós. Eu tento ajudar, indicar. Se eu vejo que tem qualidade eu passo adiante. Porque os negros estão espalhados pelos rincões do Brasil. Se eles tiverem oportunidades vão dar conta do recado", complementa ele.

"Tem poucos pretos na televisão, mas eles estão lá. O que a gente precisa é de mais negros para possibilitar que mais negros tentem esse caminho. A gente tem que se manter ali para que as pessoas continuem tentando. A caminhada é longa. Nós temos uma responsabilidade dobrada porque representamos a possibilidade para alguém que está lá na base olhando para nós, sonhando e se esforçando para encontrar esse caminho", reforça Julio.

Outro que segue incansável na luta contra o racismo é Paulo César de Oliveira. Em setembro último, o comentarista de arbitragem foi xingado de "macaco sem vergonha" no Instagram, decidiu expor o caso e registrar uma queixa-crime contra o agressor. Segundo ele, o caso ainda está sendo investigado pela Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância, em São Paulo.

"Por muito tempo eu ignorei o preconceito e o racismo. Apesar do incômodo, eu me calava e evitava o conflito. Com a maturidade, estou aprendendo a me posicionar, inclusive a respeito das formas veladas: piadas, olhares e expressões do tipo “preto de alma branca”. Eu questiono e falo que não gosto. Passei por duas situações que se tornaram públicas e procurei a justiça nos dois casos", salienta PC.

Ele reitera o discurso dos colegas de que "as redações refletem a nossa sociedade de maneira geral" e aponta que o combate à discriminação racial "deve ser por meio de políticas públicas que promovam igualdade de oportunidades". Hoje, um dos analistas de arbitragem mais respeitados da TV, PC diz ter consciência de sua posição e se vê como um espelho. 

Demitido por falar de racismo

Márcio Chagas foi comentarista de arbitragem por quase seis anos na RBS, afiliada da Globo no Rio Grande do Sul. O ex-árbitro foi demitido neste ano, no início da pandemia, por, segundo ele, falar de racismo. Na época, a empresa negou que tenha sido por esse motivo e falou em "reestruturação na área de esportes". 

Um dos poucos juízes negros a atuar no futebol brasileiro, ele sofreu na pele com ataques racistas quando ainda apitava ao se deparar com bananas atiradas em seu carro depois de trabalhar em uma partida do Campeonato Gaúcho, em 2014. Aposentado, virou analista de arbitragem e continuou sofrendo injúrias raciais nas cabines de transmissão, mas não se calou.

REPRODUÇÃO/INSTAGRAM

Márcio Chagas, na época em que foi árbitro 

"Os negros têm pouquíssimas possibilidades de ocupar um espaço de poder, de estar numa bancada sendo protagonista, de ser comentarista", observa ele. "Isso só vai mudar quando houver uma ruptura nessa estrutura extremamente racista que se tem em todos os segmentos profissionais. Enquanto não houver isso, essa falta de espaço para os negros vai se perpetuar e vai continuar aquela velha mística da meritocracia de que 'quem tenta consegue' e que a pessoa vai ser avaliada pela capacidade", salienta.

Chagas foi candidato a vice-prefeito na chapa de Fernando Melchionna (PSOL) em Porto Alegre. Os dois receberam 4,34% dos votos no primeiro turno das eleições na capital gaúcha e ficaram em quinto lugar no pleito.

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