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Kate Winslet interpretou a protagonista de Mare of Easttown, uma protagonista imperfeita
Há uma técnica bastante conhecida de storytelling (contação de histórias, em tradução livre) que consiste na chamada fórmula X/Y: a história em questão é sobre X, mas o interessante dela é Y. Mare of Easttown, série que chegou ao fim no domingo (30) na HBO, de certa maneira segue esta fórmula. À primeira vista, é uma atração sobre um crime bárbaro, um mistério que por si só já seria interessante. Mas ela retrata as muitas camadas de uma detetive, a jornada de uma heroína real. Estes X e Y a tornaram um fenômeno, aclamado por crítica e público.
Nas redes sociais, a hashtag com o nome da série chegou a ser um dos assuntos mais comentados no domingo à noite, com muita gente ansiosa para saber como seria o desfecho da história. No site Metacritic, que faz uma média das avaliações publicadas por críticos especializados, a nota de Mare of Easttown é 82 (de 100), considerada "aclamação universal". Não houve crítica negativa. No IMDB, que contabiliza avaliações de internautas, a nota é 8,6.
A princípio, os chamarizes para Mare of Easttown parecem óbvios: é uma história de crime, em que o assassinato de uma mãe adolescente é cometido numa pequena cidade onde todos se conhecem e muitos são suspeitos. Além disso, outras duas jovens desaparecem.
A detetive responsável pelos casos é Mare, interpretada por Kate Winslet. Vencedora de um Oscar de melhor atriz (em 2009, pelo filme O Leitor), ela também foi produtora executiva da série.
Estes dois pontos são muito importantes para atrair o telespectador, mas logo no primeiro episódio se percebe que, apesar de os crimes gerarem muita curiosidade, na verdade a série é sobre Mare. Sobre como essa mulher, conhecida por toda a cidade, têm de lidar com questões muito íntimas, que nem ela mesma quer olhar.
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Mare e sua melhor amiga: reconexão
A personagem se encaixa bem na jornada da heroína, teoria publicada por Maureen Murdock no livro A Jornada da Heroína: A Busca da Mulher pela Integridade. Ela analisou trajetórias de protagonistas femininas e observou pontos em comum nas histórias delas na na ficção.
Mare não dá muita atenção a atividades tidas pelo patriarcado como femininas (cuidados com a aparência, com a família, com os sentimentos) e impõe um jeito de ser mais "masculino", inclusive no vestuário, tendo em vista um objetivo maior. Isso acontece também nas tramas de Katniss Everdeen, em Jogos Vorazes, e de Mulan, no filme homônimo da Disney, por exemplo.
A protagonista de Kate Winslet é muito incisiva e dedicada ao trabalho, em alguns momentos obcecada. Com o cabelo sempre preso de forma desleixada, Mare abre no mínimo uma cerveja a cada episódio Em personagens masculinos, isso provavelmente seria considerado assertividade, mas ela passa como grossa, difícil de lidar, alguém que certamente tem problemas pessoais.
Mare claramente prioriza o trabalho em detrimento de sua família: não tem relações afetuosas nem com a mãe nem com a filha, muito menos com o ex-marido. O filho mais velho se suicidou, e ela escondeu o luto no sótão onde ele se enforcou; nunca mais mexeu nesse sentimento.
"O que eu mais amei nela é que ela é uma mulher de meia-idade heroica e imperfeita, como todas nós, e ela não pede desculpas por ser quem é. Ela só está muito cansada. Ela tem muita coisa para fazer. Como mulher, às vezes não tem nada que você possa fazer a não ser seguir tocando a vida. Isso mexeu comigo", disse Kate Winslet em entrevista à Vanity Fair.
Ao final da série [atenção: a partir daqui, este texto pode conter spoilers], além da resolução do crime (de forma totalmente surpreendente, eletrizante e acachapante), o telespectador percebe que acompanhou todo o ciclo transformador da jornada dessa heroína improvável.
É a intensa conexão dela com as pessoas da cidade que a faz desvendar o crime, e toda a jornada até então a leva a uma intensa reconexão: consigo mesma, com o feminino, com sua família, com suas dores, com a melhor amiga, até mesmo com uma relação mais saudável com o trabalho.
Nesta trajetória, a terapia ajuda muito. Mare entende que é possível continuar seguindo a vida (pois nem tudo é consertável), mas de forma melhor do que fazia antes.
Segundo o criador da série, Brad Inglesby, a intenção foi retratar em Mare e sua comunidade a força e a resiliência das mulheres, e passar através da protagonista a ideia de que ela não é errada nem super-heroína, mas simplesmente humana.
"Ela não é particularmente uma detetive espetacular como Sherlock Holmes ou Luther. É o fato de ser comum que a faz especial. Acho que isso é o que fará o público se identificar", opinou ele.
"Ela é cheia de defeitos e admite isso. É algo importante criar um personagem capaz de admitir que estragou tudo e que tem questões com as quais nunca lidou", complementa Kate, em defesa da heroína possível.
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