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REPRODUÇÃO/GLOBOPLAY
Beta (Flora Camolese) e Cadé (Jaffar Bambirra) em A Vida Pela Frente; série retomou anos 2000
Como convencer adolescentes a verem uma série que se passa numa época em que eles ainda nem eram nascidos? Um produto que até trata de dramas comuns para o jovem de hoje, mas é envolto num ar de nostalgia dos anos 1990 que abraça muito mais quem já está na casa dos 40 anos --justamente quem foi adolescente naquele período? A dúvida passou pelas cabeças das criadoras de A Vida Pela Frente, série do Globoplaycuja segunda fase estreia nesta quinta (6). Mesmo assim, elas decidiram apostar tudo e tentar se apoiar na corda bamba entre esses dois extremos.
Deu certo. A série chegou a figurar no ranking de dez produtos mais vistos do Globoplay no decorrer das últimas duas semanas, quando a primeira leva de episódios foi lançada na plataforma. Nas redes sociais, tanto adolescentes quanto adultos elogiaram a trama, e até a crítica especializada recebeu bem a obra. Mas o que fez com que essa mistura funcionasse tão bem?
Leandra Leal, Rita Toledo e Carol Benjamin, as criadoras da série, já tinham as próprias teorias desde o evento de lançamento de A Vida Pela Frente. Leandra acredita que o sucesso se deve ao fato de as três terem propriedade para contarem uma história daquela forma, naquele período --afinal, elas sentiram os dramas na própria pele. Foi por isso que ela optou por manter a trama nos anos 1990, e não trazê-la para os dias atuais.
"Foi uma escolha da gente de se conectar com algo que fosse muito verdadeiro nosso. Acho que tem uma diferença muito grande na adolescência de hoje... A tecnologia fez uma mudança muito radical na experiência do que é ser jovem. A trama iria para outros lugares. Uma coisa que nós três acreditamos é que, quanto mais a gente se conecta com aquilo que é verdadeiro na gente, mais esse lugar verdadeiro encontra o do outro", explicou a atriz --que atua como diretora de uma obra ficcional pela primeira vez.
Mas esse não foi o único motivo. As criadoras queriam trabalhar com o "bug do milênio", uma espécie de pânico geral de que toda a tecnologia implodiria na virada de 1999 para 2000 --e levaria com ela o mundo como o conhecemos. Segundo Rita, esse desespero expressa um pouco do clima da série.
O sexteto protagonista --formado por Beta (Flora Camolese), Cadé (Jaffar Bambirra), Liz (Nina Tomsic), JP (Lourenço Dantas), Vicente (Henrique Barreira) e Marina (Muse Maya)-- vive num conflito entre curtir a vida como se não houvesse amanhã --o que até faz sentido, considerando a teoria do bug-- ou se preparar para um futuro desconhecido, com computadores e, quem sabe, robôs e carros que flutuam pelas ruas.
Em alguns momentos, quando a gente estava fazendo o projeto, pensamos: 'Será que a gente bota no momento presente, será que a gente faz...?'. E não funcionava, não casava, não rolava, ficava estranho. Claro, pela motivação de falar da nossa adolescência, mas também por a gente estar falando de questões que aquele momento específico da virada do milênio expressam. O bug expressa metaforicamente as questões da série. A ideia de um futuro que morre.
Aqui, o significado é mais literal: o futuro e os sonhos de Beta morreram, uma vez que ela supostamente cometeu suicídio na primeira fase da trama. Mas outras camadas disso reverberaram em Carol após a paralisação do projeto, em plena pandemia da Covid-19. As gravações estavam marcadas para 2020, mas tudo mudou com a chegada de um vírus tão poderoso. Tudo isso somado à ameaça cada vez maior das emergências climáticas.
jorge bispo/globoplay
Flora Camolese como Beta na série
"Eu me lembro de pensar: 'Caramba! Esse projeto, que trata de um momento em que a ideia de bug do milênio na verdade era muito esvaziada, vai vir a público depois de uma pandemia que talvez seja o verdadeiro bug do milênio. O verdadeiro momento em que todo o mundo parou, as ruas se esvaziaram, enfim", filosofou a roteirista.
O medo de não existir futuro, depois de uma pandemia e das péssimas perspectivas climáticas, é um drama do adolescente moderno que reverbera. Assim como vários outros, que vão desde a aceitação da sexualidade até o uso de drogas. Esse é o grande trunfo da série, ao menos para Leandra Leal. Os personagens carismáticos, somados a uma linguagem que não trata o público jovem como "bobo", atraem tanto adultos quanto adolescentes.
Por outro lado, as roteiristas negam que tenham se aproveitado do recente "boom" da estética dos anos 1990. O projeto começou a ser desenvolvido em 2013, quando objetos referentes às décadas anteriores pareciam mais distantes do que nunca. "Foi uma feliz coincidência que esse período viesse à tona agora", brincou Rita.
Os anos 1990 até podem ser um lugar-comum para as criadoras mas, para o elenco jovem, são um ponto fora da curva. Flora Camolese, a Beta, não conseguiu engolir que as pessoas da época não faziam sinais de coração com as mãos. "Isso é bizarro. Para mim, é uma coisa que é pré-histórica. Mas aparentemente isso não existia", disse ela, indignada.
Gírias também foram uma questão. Vira e mexe, Leandra interrompia as gravações e corrigia os colegas. Ela e as demais criadoras também bolaram uma lista de expressões da época, assim como mostraram vídeos de suas próprias adolescências no período de preparação. "Foi muito legal que, vendo esses vídeos, percebemos que a relação com a câmera era muito diferente. Tipo assim, hoje em dia todo o mundo tem câmera, é uma exposição muito grande. Mas, cara, antes não era natural jogar uma câmera [no rosto de uma pessoa]... Levamos isso em conta", contou Lourenço Dantas, o JP.
Clara Rocha, a diretora de arte, se empolgou tanto nessa ideia de viagem no tempo que ressuscitou até papéis de bala e cadernos da época. "Eu abria minha mochila de escola e tinha papel de chiclete, cadernos, tudo perfeito. Era uma coisa que, por mais que não aparecia na câmera, pra gente fazia toda a diferença do mundo. Colocava a gente num estado que não tinha desculpa pra você não... Não era atuação o que a gente estava fazendo. Ali era muito verdade. Não tinha espaço para não ser verdade", revelou Flora.
Para a atriz, isso fez toda a diferença. O universo de Beta era muito semelhante ao dela, que também passou toda a infância e adolescência na mesma escola. Ela precisava ser lembrada recorrentemente que estava interpretando uma realidade 20 anos anterior à sua.
Muse Maya, a Marina, teve uma realidade bem diferente. Mas teve as próprias dificuldades para se adaptar nos universo de década de 1990:
Eu sou muito uma criança dos anos 2000, supertecnológica, passei a minha adolescência no computador. Completamente diferente desse universo. Pude resgatar como minha mãe viveu, como as pessoas se comunicavam, entender como era muito mais difícil as pessoas se entenderem, como a gente é privilegiado, hoje em dia, em poder se comunicar. Ao mesmo tempo, sinto falta dessa naturalidade na interação das pessoas, de as pessoas terem tempo, terem espaço. Acho que hoje tudo é muito acelerado.
Esse "privilégio" de se comunicar extrapola as conversas que temos com os amigos no dia a dia. A internet possibilitou que temas sociais, antes restritos a uma classe mais "intelectual", fossem disseminados com facilidade. Algumas dessas questões teriam facilitado muito a vida dos personagens da série. É o caso de Marina, que não tinha repertório para reconhecer a própria negritude e os casos de racismo que vivenciava.
jorge bispo/globoplay
Muse Maya (à dir.) com o elenco da série
"Ela não sabia qual era a diferença entre ela e aqueles amigos, e o que de fato estava acontecendo pra ela se sentir tão confusa", explicou Muse Maya. "Eu me senti extremamente escutada para entender como a gente poderia aprofundar isso e trabalhar de uma forma sensível e que condiz com a realidade da Marina --que não tinha acesso às informações nem referências ao redor dela... Ela só teve pessoas brancas ao redor dela a vida inteira."
JP também não recebeu apoio para se assumir parte da comunidade LGBTQAIP+, e nenhum deles teve acesso a materiais sobre o luto e o uso de drogas. Liz não se deparou com textos sobre responsabilidade afetiva em seu feed das redes sociais, algo que poderia mudar a maneira como ela lidou com seu flerte descompromissado com Beta. Aliás, no caso da última, a falta de tecnologia teve implicações práticas. Tudo poderia ser diferente se ela tivesse postado uma foto de onde estava momentos antes de sua morte.
Mas isso não eximiu as criadoras e os atores a pensarem que, querendo ou não, estamos em 2023. É preciso considerar o olhar que a sociedade de hoje tem sobre determinados temas, apesar de a série ser ambientada nos anos 1990. "A gente teve de afinar esse lugar. O que a gente quer reforçar? A gente quer mostrar o que tinha de ruim naquela época? O que tinha de bom? Os dois? Como mostrar? Porque é isso. Os problemas da adolescência são os mesmos, mas as ferramentas e a cultura, não. O que é falar sobre aquela adolescência de 20, 30 anos atrás hoje? Qual a nossa responsabilidade de contar essa história?", refletiu Henrique Barreira.
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