'BURY YOUR GAYS'
JORGE BISPO/TV GLOBO
Beta (Flora Camolese) em cena de A Vida Pela Frente; personagem comete suicídio na série
[Alerta de gatilho: o texto a seguir pode conter informações sensíveis sobre tristeza, depressão e suicídio]
Os cinco primeiros episódios de A Vida Pela Frente já levaram uma personagem embora: Beta (Flora Camalese), parte importante do sexteto protagonista, cometeu suicídio. A decisão dos roteiristas suscitou um debate logo no evento de lançamento da série: se livrar de uma personagem LGBTQIA+ não seria recorrer ao chamado "Bury Your Gays" --conceito segundo o qual os personagens da comunidade sempre acabam sofrendo consequências trágicas, em detrimento de cis e héteros?
O conceito é antigo, e foi criado em referência a filmes hollywoodianos. Basicamente, é quando um personagem LGBTQIA+ faz parte de um grande grupo e sofre várias provações com os colegas, muitas vezes apresentando habilidades incríveis. Mas algumas histórias precisam de um "tempero" dramático, e a morte de um personagem querido é uma opção vantajosa. O ponto é que pesquisas mostram que, nesses casos, o personagem LGBTQIA+ é abatido em maior número e frequência do que os demais.
Aliás, até os romances LGBTQAI+ são mais trágicos do que os héteros. É como se o autor exagerasse no sofrimento do personagem para criar uma identificação com o público, que entraria na história "apesar" de o protagonista ser gay.
O caso dos protagonistas de A Vida Pela Frente é um pouco mais complexo. Beta, afinal, não é a única personagem LGBTQIA+ do grupo. JP (Lourenço Dantas) se descobre gay no decorrer da série, e Liz (Nina Tomsic) também se permite viver uma experiência homossexual --com a própria Beta, inclusive, que acaba se apaixonando pela amiga.
Ainda assim, o conceito foi levantado durante a conversa com os jornalistas. Rita Toledo, uma das criadoras da série, fez questão de retrucar a ideia: "O suicídio foi uma questão levantada na sala de roteiro, muito pensada, muito trabalhada. Até porque na nossa sala de roteiro tinha mais gente não-heteronormativa do que gente heteronormativa. Mas a história não é exatamente essa. Isso não anula essa questão [de Beta ter se suicidado por ter dificuldade de aceitação], é uma camada que está ali, sim, mas a gente fez com carinho, com cuidado, com consciência, querendo acertar", argumentou.
reprodução/globoplay
Nina Tomsic e Flora Camolese em A Vida Pela Frente
Carol Benjamin, outra criadora da série, destacou que parte dos roteiristas é da comunidade e dividiu suas experiências na construção dos personagens. "A gente está falando de uma época em que era tudo mais difícil, até por uma falta de representatividade... Era muito difícil você se entender, se reconhecer, se aceitar. A Beta está vivendo os dilemas em relação a isso, mas também de outras camadas da existência dela", completou.
Muse Maya, que interpreta Marina na série, destacou que esse e outros temas foram tratados pelo próprio elenco durante a preparação. "Todas as questões delicadas de luto, suicídio, a questão LGBTQIA+, a questão de racialidade, questões econômicas... A gente conversou sobre todas elas", explicou. "É uma série de muita densidade, de muitos momentos tristes, mas também tem momentos gostosos, felizes. Ninguém da nossa comunidade vai ficar triste por conta desse assunto. As questões de tristeza da personagem são muito maiores do que isso."
Se a descoberta enquanto LGBTQIA+ não foi preponderante para o suicídio de Beta, outras partes da personagem foram. Mas quais seriam elas, considerando que todos ali têm dilemas internos e problemas familiares? Segundo Leandra Leal, criadora e diretora da produção, a ideia foi quebrar o estigma de que personagens suicidas sempre são "obviamente deprimidos" e "facilmente identificáveis".
De fato, a personagem de Flora Camalese parece não ter tempo ruim. Sempre está sorridente, curtindo com os amigos e os ajudando a lidar com seus traumas. Ela dá alguns sinais de que não está bem e vive se colocando em situações arriscadas, mas, de longe, não parece sentir nada demais. As peças só se encaixam quando os amigos e o público exercem a empatia para entender os dilemas dela. Carol Benjamin explicou:
A gente procurou construir um contexto familiar de pais que têm carinho, mas que nunca estão presentes. Ela tem um vazio que é estrutural na vida dela, uma dependência dessa rede de amigos. E aí ela está nesse momento que é o fim de um grande ciclo, o ciclo da escola, em que ela tem a segurança de que vai estar junto dessa rede de amigos todos os dias. É um ambiente seguro para que ela possa expor todas as fragilidades dela, mas aquele mundo vai ruir. E como é que ela vai se adaptar?
Dentro do universo da série, Beta é a personagem com menos perspectiva. Apesar de seus pais poderem financiar e suprir qualquer tipo de desejo, ela não tem ferramentas nem para entender o que ela deseja. Ao mesmo tempo, a estudante tenta construir uma imagem de que tem tudo sob controle.
Nesse ponto, Rita acredita que a série se encontra com o mundo contemporâneo: "A imagem que ela constrói para si não reflete exatamente quem ela é. Claro, a gente sempre constrói uma imagem. Mas, assim, a Beta... Apesar de ela ser muito espontânea, muito para fora... Na verdade, ela é frágil por dentro. Hoje, essa é uma questão muito grande na adolescência por conta das redes sociais, por conta das personas...", afirmou.
Claro, a descoberta da sexualidade, especialmente por meio de um amor não correspondido --Liz trata a relação delas como uma aventura, enquanto Beta realmente se apaixona--, também interfere nesse processo. Ainda mais no início dos anos 2000. Mas tudo indica que o conceito hollywoodiano não se aplica na série.
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