NO GLOBOPLAY
JOÃO MIGUEL JÚNIOR/TV GLOBO
Humberto Martins caracterizado como Carlos Camacho, ditador de Kubanacan
Disponibilizada pelo Globoplay em dezembro, Kubanacan (2003) tem feito a alegria dos noveleiros de plantão. Revê-la 18 anos depois traz à tona diversas críticas políticas que continuam atuais. O público até questiona se o autor Carlos Lombardi não tinha uma bola de cristal para prever o governo de Jair Bolsonaro --o general Carlos Camacho (Humberto Martins) parece uma cópia do atual presidente do Brasil.
Autor da trama, Carlos Lombardi define o personagem como "um soldado de quinta categoria que acaba virando o ditador da ilha porque era o amante da primeira-dama, Mercedes Montenegro [Betty Lago]". Na história, ele se antecipa ao golpe que vinha sendo articulado pelo Exército e toma o poder na fictícia ilha de Kubanacan.
Tudo se desencadeia após a morte de Rúbio Montenegro (Stênio Garcia), que havia vencido as eleições três anos antes. A maneira como Camacho chega ao cargo mais importante do país, aliás, é a principal diferença entre sua trajetória e a de Bolsonaro, eleito pelo voto.
Muitos dos comportamentos e atitudes do general da ficção foram reproduzidos pelo atual presidente do Brasil. Sempre que se sentia acuado, Camacho enviava um sósia para representá-lo. O personagem, que recebeu o sugestivo nome de Capacho, era defendido pelo ator Marcelo Saback.
Em março do ano passado, Bolsonaro foi a uma coletiva acompanhado do humorista Márvio Lúcio, o Carioca, que estava caracterizado como o presidente para a gravação de uma reportagem do Domingo Espetacular, da Record. A brincadeira irritou os profissionais de imprensa.
Além disso, tanto Camacho quanto Bolsonaro adotam a estratégia de incitar a população contra seus desafetos e opositores políticos, com discursos inflamados. Assista a uma das cenas:
O tanto que o Lombardi PREVIU o Bolsonaro, caras, chega a me assustar. Até o lance do sósia naquele episódio do Carioca ele acertou 😳 #kubanacanpic.twitter.com/0umVuf0Aik
— ela fez história deitada em uma cama (@whoisjupa) December 31, 2020
Em diversas ocasiões, o chefe do Executivo abandonou a compostura ao partir para o ataque. Foi o que aconteceu, por exemplo, quando Bolsonaro ameaçou caçar a concessão da Globo após uma reportagem do Jornal Nacional ter citado seu nome na investigação do caso Marielle Franco (1979-2018). Também merece destaque o tom caricatural que marca o discurso de ambos.
Carlos Lombardi defende que Camacho é uma síntese do populista brasileiro, o machão que prende e arrebenta, mesmo que às custas de um dublê que ele sempre mandava em seu lugar quando qualquer risco surgia. Apesar de reconhecer que o personagem remete a Bolsonaro --especialmente, segundo ele, por seu temperamento e boca descalibrada— o autor explica que o criou a partir de várias referências.
"Tinha lances de Lula, de Ciro Gomes, Jânio Quadros [1917-1992] e de tantas figuras do passado. Ele lembra o atual presidente? Sim. Algumas coincidências até me surpreendem. Mas isso diz mais sobre os brasileiros do que sobre mim. Mostra o quanto o país gosta desse tipo e como continua votando em diferentes versões dele", pontua o escritor.
Para além das alfinetadas a políticos, a novela também se caracteriza por uma crítica social recorrente. Já nos primeiros capítulos, são retratadas as dificuldades dos personagens em conseguir atendimento nos postos de saúde, por exemplo. Há também as constantes quedas de energia, que remetem ao apagão que parou o Amapá no fim do ano passado.
Sobre as premonições, Lombardi conta que, com a novela no Globoplay, já o chamaram de Nostradamus (1503-1566), francês que ganhou notoriedade por sua capacidade de fazer previsões. Embora a comparação o envaideça, ele contesta essa teoria.
"Kubanacan lembra o Brasil de hoje: continuamos com apagões. Aqui em casa é uma lástima, choveu, acaba a luz, e vivo na região central de São Paulo. Mas não fui eu que fui ao futuro para escrever. O Brasil é que continua amarrado ao passado e à incompetência generalizada", sentencia ele, que lembra que as coincidências não param por aí. "Afinal, lá pelo meio da novela temos até uma presidenta. O termo era irônico, mas mais tarde foi usado a sério", antecipa.
A reportagem também questionou Lombardi sobre a inspiração para criar Kubanacan, tida por muitos como uma trama absurda e bizarra, que incluía até viagens no tempo. O experiente roteirista contou que se sua referência foi Que Rei Sou Eu? (1989), história medieval de Cassiano Gabus Mendes (1927-1993).
"Queria falar do Brasil criando uma história em uma terra distante. Decidi incluir uma trama com espionagem, quem sabe um 007 que fosse efetivo, mas que também fosse engraçado. A ideia de focar a trama numa nação fictícia do Caribe meio que nasceu quando ouvia um disco já antigo de Ney Matogrosso. Com a música Cubanacan. Tinha que ser o título da novela --só coloquei o K porque Mario Lucio Vaz achava que era uma letra de sorte", conta.
Além de Camacho, outros personagens da novela marcaram o imaginário popular, caso de Esteban, o pescador parrudo vivido por Marcos Pasquim. O destaque dado ao colega teria motivado Martins a pedir o afastamento temporário da trama. Oficialmente, no entanto, a ausência aconteceu por problemas pessoais.
Mesmo com os imprevistos a que toda obra aberta está sujeita, o balanço que Lombardi faz da história é positivo. "Foi exaustivo escrever. Como toda novela de 200 e tantos capítulos, tive peças importantes do elenco passando por doenças, tive que fazer remendos que preferia não ter feito, mas isso é do gênero", define.
"Assistindo novamente agora, me divirto muito e tenho orgulho de ter feito uma protagonista ímpar como Lola --agradecendo sempre Nossa Senhora da Escalação que me deu de presente uma Adriana Esteves em estado de graça", finaliza o novelista.
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