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COLUNA DE MÍDIA

Guerra na Ucrânia: A derrota da Rússia nas redes e o risco da splinternet

REPRODUÇÃO/JOVEM PAN NEWS

Os presidentes Vladimir Putin e Jair Bolsonaro

Vladimir Putin e Jair Bolsonaro, políticos populistas e em busca do controle das redes sociais

Guilherme Ravache

ravache@proton.me

Publicado em 5/3/2022 - 6h35

Durante anos a Rússia manteve ativa uma das mais eficientes operações de disseminação de fake news e desinformação do mundo. Meios de comunicação estatais russos como RT, Sputnik e TASS, que há muito servem como braço de propaganda do Kremlin, são a parte mais visível de uma estrutura gigantesca que atua principalmente nas redes sociais e já conseguiu interferir até nas eleições presidenciais norte-americanas.

Essa gigantesca rede de desinformação a serviço de Putin agora atua vendendo a ideia de que a invasão da Ucrânia é justificada e que a Rússia está vencendo sem grandes contratempos. Muitos russos também acreditam que seus militares estão na realidade executando uma "missão de paz" para defender minorias russas no país vizinho.

Mas diferentemente do passado, o sucesso da rede de propaganda pró-Kremlin fora da Rússia tem sido cada vez menor. A rápida ação do Facebook, Google, Apple, TikTok, Twitter e Microsoft, entre outras empresas de tecnologia, limitou drasticamente a distribuição e a monetização dos conteúdos de desinformação e fake news relacionados à invasão da Ucrânia.

E isso é uma informação nova e poderosa, porque mostra ser possível controlar até mesmo uma das mais poderosas máquinas de desinformação do mundo nas redes sociais. Revela também como as empresas de tecnologia evoluíram na moderação de conteúdo nos últimos anos.

Idade das trevas nas redes sociais

Desde 2016, com a eleição do presidente Donald Trump, o papel nocivo das redes sociais na crescente polarização do debate político e como ferramenta de manipulação da opinião pública ficou cada vez mais evidente.

A vitória do empresário aspirante a político foi um divisor de águas. Quando a classe política descobriu que desinformação e polêmicas nas redes sociais venciam eleições, os candidatos populistas ganharam vantagem. Importava menos o orçamento da campanha e mais o quanto você estava disposto a correr riscos e criar polêmicas.

No Brasil, Jair Bolsonaro e seus aliados usaram de maneira eficiente as redes sociais e aplicativos de mensagens como o WhatsApp para chegar ao poder. Mas ele não foi o único. Na Índia, Narendra Modi também teve o Facebook e o Twitter como peças-chave em sua jornada rumo ao posto de primeiro-ministro. Na Itália, Bulgária, Polônia e diversos outros países onde os populistas chegaram ao poder, a estratégia foi semelhante.

Parecia um caminho sem volta. Algoritmos otimizados para criar conteúdo polêmico e polarizador despertavam raiva e ódio, gerando mais engajamento e cliques. Moderação do conteúdo era ineficiente. Lideranças de gigantes de tecnologia pareciam desconectadas da realidade se portando como se o problema não fosse com eles. Empresas estavam mais focadas no lucro do que na resolução dos problemas que causavam. Difícil acreditar que as redes sociais não estivessem contribuindo para o fim da democracia.

Big techs acordaram para não morrer

Mas como afirmou o colunista Casey Newton, depois de a Rússia ser apontada como uma das responsáveis pela eleição de Trump usando sua poderosa rede de influência, o que se imaginava é que o país também lideraria o maior conflito armado da era das redes sociais. Mas diferentemente do esperado, a Rússia está perdendo a guerra da informação na Ucrânia. 

"É a Ucrânia que tem sido magistral no uso das mídias sociais --e embora isso possa não ser decisivo para se sobrepor à superioridade militar da Rússia, no mínimo complica nossa compreensão das big techs e da democracia", afirma Newton, que acrescenta ainda que "os Estados Unidos desempenharam um papel crítico em prejudicar a credibilidade de Putin antes mesmo de a guerra começar". 

As agências de inteligência dos EUA perceberam que uma invasão estava chegando, o governo Biden compartilhou essa informação publicamente e, ao fazê-lo, removeu tanto a capacidade de Putin de lançar um ataque surpresa quanto qualquer esforço para criar um pretexto falso para fazê-lo.

Esse movimento americano facilitou a criação de um front único dos países europeus, além do Japão, Canadá e Estados Unidos. As rápidas medidas tomadas pelos governos também facilitaram o posicionamento das empresas de tecnologia. Com um vilão claro na história, dificilmente alguém repreenderia as empresas por coibir a liberdade de expressão de Putin e dos russos.

Porém, a habilidade midiática de Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, e um populista hábil em usar as redes sociais, tornou as coisas ainda mais complexas.

Zelensky, de comediante a herói

A decisão de Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, de permanecer no país e lutar se tornou uma arma poderosa. Mas a maior parte dessa força vem dos vídeos que ele compartilha nas redes sociais e chegam aos quatro cantos mundo. A imagem real de um líder resistindo bravamente à tirania do opressor russo atrai a atenção da mídia e dos usuários das redes.

Há vídeos de soldados russos rendidos e sendo acolhidos por ucranianos com chá; um homem tentando resistir sozinho e desarmado a um tanque; um carro sendo esmagado por um blindado; prédios em chamas e soldados mortos pelas ruas. As imagens heroicas e comoventes que viralizam nas redes pintam um cenário desastroso para Putin.

Obviamente, essas imagens colocam a Rússia em uma posição bastante desconfortável. Encurralados e expostos, os russos podem aumentar as medidas retaliatórias extremas, como bombardeios, para tentar terminar a guerra mais rápido e consumar o fato.

Se a guerra não fosse pública, talvez pudessem travá-la sem pressa e limitando-se a um cerco, com menos mortes de civis. É difícil prever o real impacto das redes sociais nas decisões da Rússia em um cenário tão volátil. Mas o papel dessas plataformas como uma ferramenta de defesa da democracia da Ucrânia neste momento é inegável.

No entanto, imaginar que a Rússia não irá tentar retomar o controle da narrativa é um erro.

Facebook e Twitter censurados na Rússia

Como resposta, a Rússia bloqueou o acesso ao Facebook e ao Twitter no país. Desde 25 de fevereiro, um dia após o ataque à Ucrânia, Moscou vinha dificultando o acesso dos cidadãos a essas redes sociais. Na sexta-feira, bloqueou definitivamente. A Rússia também tem usado a Lei Soberana da Internet, que o presidente Vladimir Putin assinou em 2019, para censurar sites.

O movimento não se limita às redes sociais e veículos de notícias. No ano passado, a Rússia classificou a Netflix como fornecedora de audiovisual, uma mudança que força o serviço de streaming a oferecer os canais de televisão estatais da Rússia para seus cerca de 1 milhão de assinantes no país. A Netflix anunciou essa semana que desafiaria a lei e não transmitiria os canais russos.

Ontem, a Rússia tomou medidas ainda mais drásticas. Deputados aprovaram um projeto de lei que prevê até 15 anos de prisão para quem divulgar fake news sobre ações das Forças Armadas do país. Até o momento, não ficou claro o que a lei define como notícias falsas.

No ano passado, autoridades em pelo menos 48 países criaram novas regras para conteúdo, dados ou competição em plataformas digitais, de acordo com a Freedom House, um grupo sem fins lucrativos que reporta o estado global da democracia e da política de internet.

Políticas como a implementada pela Nigéria permitiram que as autoridades do país bloqueassem o Twitter depois que a plataforma excluiu uma postagem do presidente da Nigéria. Já na Índia, o TikTok e outros aplicativos chineses ou ligados a empresas da China foram banidos após um conflito entre os dois países asiáticos.

A Netflix e demais empresas que não seguirem as ordens de Moscou podem ser forçadas a deixar a Rússia.

Splinternet, ou mais de uma internet

Enquanto a desinformação nas redes sociais parece ser um risco que estamos aprendendo a lidar, a guerra na Ucrânia aponta para um novo fenômeno que ameaça a democracia. É a splinternet, ou fragmentação da internet. Ao invés de termos uma única internet como é hoje, por razões políticas, econômicas ou religiosas, começam a se criar novas redes para substituir a internet como a conhecemos.

Isso já acontece na China, que impede o acesso de seus habitantes ao conteúdo de sites e aplicativos de celular não aprovados por seus sensores. Nessas "novas" versões da internet, o dono da rede tem controle absoluto do que pode ou não aparecer.

Obviamente, uma internet para chamar de sua, é o sonho de todo ditador ou populista com tendências autoritárias. Controlar o que as pessoas veem e como se informam é uma ferramenta extremamente poderosa, mas antidemocrática.

No momento em que o Brasil tenta criar uma nova legislação para regular as redes sociais com a lei das Fake News, é importante ficarmos atentos. A proposta atual, e que pode ser aprovada em regime de urgência, é ruim. O projeto de lei teve diversas emendas adicionadas sem praticamente qualquer discussão com a sociedade. Ao pé da letra, o projeto até já deixou de ser sobre fake news.

As redes sociais mostraram que controlar a disseminação de fake news e desinformação não é fácil, mas é possível. Acima de tudo, são uma alternativa melhor do que uma internet controlada por autocratas e ditadores que escolhem o que você pode ou não ver.


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