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COLUNA DE MÍDIA

Globo sonha em ser Netflix, mas ainda se comporta como Blockbuster

REPRODUÇÃO/TV GLOBO

Regina Casé em cena de Amor de Mãe: caracterizada como Lurdes, personagem faz cara de confusão para alguém fora do quadro

Lurdes (Regina Casé) em cena de Amor de Mãe; Globo perde a mão com funcionários

GUILHERME RAVACHE

ravache@proton.me

Publicado em 21/1/2021 - 6h45

A Globo enfrenta o maior desafio de sua história, e mudar não é apenas uma escolha, é uma necessidade. Não por acaso, a empresa lançou o projeto Uma Só Globo para unificar suas marcas e acelerar a digitalização do grupo. Infelizmente, o discurso de inovação parece esquecer o elemento mais importante em qualquer organização: as pessoas.

São as pessoas que diferenciam a Blockbuster da Netflix. Quando a segunda surgiu, era uma pequena empresa que mandava DVDs pelo correio e competia com a gigante Blockbuster.

Reed Hastings, fundador da Netflix, inclusive fez uma reunião para ser comprado pela Blockbuster, mas a rede de locadoras achou, na época, que pagar US$ 50 milhões pela Netflix era um exagero, e dispensou o negócio. Hoje, a Netflix vale mais de US$ 200 bilhões. A Blockbuster? Desapareceu.

reprodução/youtube

CEO da Netflix, Reed Hastings se reinventou

"Muitas vezes me perguntam: 'Como isso aconteceu? Por que a Netflix conseguiu se adaptar diversas vezes e a Blockbuster não?'", lembra Hastings em seu livro A Regra É Não Ter Regras: A Netflix e a Cultura da Reinvenção.

"Naquele dia em que fomos a Dallas, a Blockbuster estava com as cartas na mão. Eles possuíam a marca, o poder, os recursos e a visão. A Blockbuster ganhava de nós sem mexer um dedo. Não era óbvio na época, nem mesmo para mim, mas nós tínhamos uma coisa que a Blockbuster não tinha: uma cultura que colocava as pessoas acima dos processos, que enfatizava mais a inovação do que a eficiência e que mantinha pouquíssimos controles."

"Nossa cultura --focada em alcançar o melhor desempenho com a densidade de talento e em liderar as nossas equipes com contexto em vez de com controle-- nos permitiu crescer e mudar continuamente à medida que o mundo e as necessidades de nossos assinantes se transformavam à nossa volta."

Historicamente, a Globo sempre colocou os funcionários em primeiro plano. Não por acaso, a expressão "prata da casa" está diretamente associada à emissora. Mas o mundo mudou, e ela tem de se adaptar. O plano nesse sentido é ser Uma Só Globo. Mas como Mike Tyson disse: "Todo mundo tem um plano até levar um soco na cara". 

Ao ler as recentes notícias, é difícil entender como uma empresa vai atrair ou reter pessoas se demite funcionários que são "prata da casa", corta o lanche gratuito da madrugada e reduz a qualidade de equipamentos como o Globocop para cortar custos. 

REPRODUÇÃO/TWITTER @UAITEVE

Substituição de aeronave foi motivo de críticas

Discurso incoerente

"Saber o que funciona para criar uma cultura inovadora é a pergunta de US$ 1 bilhão", ensina Bruno Carramenha, diretor da consultoria de cultura organizacional 4CO: "Mas sabemos o que não atrapalha. No topo das grandes empresas, normalmente há um pequeno grupo de pessoas inteligentes e muito bem-sucedidas".

"Essas pessoas trabalham com grandes consultorias, planilhas, Power Point e acreditam ter todas as respostas. Então, tomam as decisões e esperam que as equipes obedeçam. Porém, hoje os colaboradores estão muito antenados. Os funcionários normalmente sabem mais do que seus diretores imaginam", afirma. 

Atualmente, envolver os funcionários nas decisões e tornar o processo transparente e colaborativo é essencial. "Mudar nunca é fácil, mas as pessoas não mudam porque o chefe mandou. É preciso integrar as pessoas na construção dessa nova visão da empresa", diz Carramenha. 

Se o plano da Globo é se digitalizar, a necessidade por material humano será ainda maior em um mercado em que é notoriamente difícil contratar talentos (eu não gostaria de estar na pele de um recrutador da Globo que hoje tem de competir com Google, Facebook, Amazon, Magazine Luiza, Stone e PagSeguro por programadores, isso para citar somente alguns players bilionários do mercado). Ou seja, a reinvenção da Globo passa por seus talentos. 

"Os conselhos e a liderança das empresas rapidamente percebem que tudo é fácil até que as pessoas atrapalhem", diz Rishad Tobaccowala, autor de Restoring the Soul of Business: Staying Human in the Age of Data (Restaurando a Alma do Negócio: Mantendo-se Humano na Era dos Dados, em tradução livre).

Tobaccowala afirma que, se não houver nada para os funcionários, as pessoas vão ser mais espertas, esperar, fingir e manobrar melhor do que a diretoria. Nesse cenário, as pessoas jogam o jogo. Aparecem compreensivas e sérias nas reuniões, murmuram os mantras motivacionais e declaram os slogans necessários. 

REPRODUÇÃO/YOUTUBE

Rishad Tobaccowala em palestra no Google 

Mas paralelamente, buscam um novo emprego e pouco fazem para realmente mudar o lugar em que estão. Segundo Tobaccowala, se você deseja que sua organização ou equipe cresça e mude, você precisará dar resposta a quatro perguntas para sua equipe:

1) Por que as alterações recomendadas são boas para eles?
2) Como isso pode ajudá-los a crescer?
3) Quais são os incentivos monetários ou outros benefícios para mudar?
4) Quando e onde será fornecido treinamento para ajudá-los a aprender as novas habilidades necessárias?

Nas recentes declarações de seus diretores, a Globo adota um tom de eficiência rumo à digitalização, deixando o aspecto humano em segundo plano. Veja a resposta da Globo ao fato de cortar o lanche gratuito para os colaboradores da madrugada na empresa:

"Como é de conhecimento, a Globo vem revisando todos os seus processos para garantir maior integração e uniformização de suas políticas internas. Para a alimentação, conforme o comunicado ao qual você teve acesso, a mudança foi feita a partir do contrato com novos fornecedores para a oferta de maior variedade aos colaboradores."

O problema é que essa postura não responde a nenhuma das quatro questões acima. E pior, irrita os colaboradores. Tentar "vender" como um benefício a mudança (o aumento da variedade), e não como algo ruim, mas necessário (ter de pagar por algo que era gratuito), não é transparente com a equipe. E pela polêmica gerada internamente, é pouco provável que os funcionários afetados pela medida tenham sido envolvidos na tomada da decisão.

Pode-se argumentar que está "implícita" a crise na Globo, e os funcionários deveriam saber. Mas não é assim que funciona, a postura paternalista de muitos chefes que acreditam que os colaboradores não têm capacidade de lidar com questões complexas é um erro.

A mudança não acontece por causa de fusões e aquisições, comunicados à imprensa, reorganizações ou um novo líder, todos os quais, sem dúvida, desempenham um papel. Uma organização muda e cresce quando as pessoas na organização mudam e crescem. 

"Tecnologia e marca você pode comprar, mas a cultura de uma empresa não está à venda. É resultado de processos históricos e tudo que já passamos", lembra Carramenha, que e acrescenta: "Você também não pode jogar fora a cultura da empresa, afinal foi o que a trouxe até aqui. Talvez essa cultura não a leve daqui para a frente, mas você não mata a cultura de um dia para o outro". 

Talvez o grande problema do conceito Uma Só Globo é colocar a empresa e suas marcas como centro de tudo, e não as pessoas que a levaram até onde está hoje. Independentemente de slogans, não será cortando lanches ou adotando um Globocop de pior qualidade que a Globo se tornará uma nova Netflix. 

Vale lembrar que a Blockbuster não acabou por causa da Netflix. Ela fechou as portas porque entrou em uma crise de identidade. À medida que a Netflix crescia, a Blockbuster lançou o próprio serviço de locação de DVDs pelo correio (mais caro e com multas), começou um serviço de streaming em parceria com a Enron muito antes da Netflix, mas abandonou a iniciativa porque as lojas físicas eram mais lucrativas.

E finalmente, à medida que a Netflix focava em streaming, a Blockbuster atirava para todos os lados, adicionando games às suas lojas, montando quiosques com tecnologia inferior e cortando custos nas lojas, trocando pessoas que entendiam de filmes por atendentes de menor custo. 

Por que isso importa

A Globo é referência para muitas empresas em processo de transição. Muito daquilo que fizer ou deixar de fazer se tornará referência para o mercado.

Bolha de pensamento

Em meio a tantos custos dentro de uma empresa do tamanho da Globo, cortar o custo dos sanduíches da madrugada parece mais uma medida para mandar uma mensagem do que algo essencial. Se for isso, é sintoma de uma comunicação interna pouco efetiva.


Este texto é argumentativo e não expressa necessariamente a opinião do Notícias da TV. A Coluna de Mídia é publicada toda quinta-feira.


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