'MEU REI' TÁ DIFERENTE
DIVULGAÇÃO/NETFLIX
Elenco de Carnaval, da Netflix, reunido em tabuleiro de baiana de acarajé no Pelourinho, em Salvador
Mesmo sem colocar o clichê "meu rei" em Carnaval (2021), a Netflix pecou na pesquisa sobre o festejo de Salvador na produção do seu filme original. Desprezou tradições, ignorou critérios básicos de localização e usou a licença poética para abusar da boa vontade dos conhecedores da folia de Momo da capital baiana, uma das mais famosas do país.
O filme conta a história de quatro amigas que ganham uma viagem para Salvador em pleno Carnaval, após a blogueira Nina (Giovana Cordeiro) levar um chifre do namorado e virar meme. A convite de Freddy (Micael Borges), um cantor de axé em ascensão, a influenciadora digital viaja com Michele (GKay), Vivi (Samya Pascotto) e Mayra (Bruna Inocencio) para conhecer a "energia" do baiano.
Apesar de evitar clichês, como o uso da expressão "meu rei" --que ninguém fala--, o filme gourmetiza a folia de rua e ignora princípios básicos de pesquisa. Um simples Google ajudaria no roteiro.
[Atenção: spoilers de Carnaval abaixo]
O primeiro --e mais absurdo-- erro do longa envolve a personagem Mayra (Bruna Inocencio). Companheira mais antiga da protagonista, a jovem tímida é levada para o meio da concentração dos trios, na Barra, em Salvador. Ela tem pavor a multidão e se perde antes de conseguir subir no palco itinerante de Durval Lelys com a melhor amiga. A turista, perdida e assustada, vai parar no Pelourinho.
Acontece que os dois lugares não têm ligação alguma. O início do circuito Barra-Ondina fica a quase 6 quilômetros da Escadaria do Paço, conhecida por ter sido cenário de O Pagador de Promessas (1962). Por lá, a garota é fortalecida pela fé e consegue encontrar forças para superar o trauma e reencontrar a amiga. A pé, a caminhada dura mais de uma hora (veja o mapa abaixo).
Se perder na Barra e ir parar no Pelourinho, mais precisamente na região do Carmo, é tão absurdo quanto alguém tropeçar na rua 25 de Março, em São Paulo, e cair em frente ao Masp (Museu de Arte de São Paulo).
reprodução/google maps
A menos que se tenha um helicóptero, se hospedar em Praia do Forte, no município de Mata de São João, e ir passar o Carnaval em Salvador não faz sentido algum. O Tivoli Ecoresort, onde as protagonistas se hospedam, fica a 85 quilômetros do ponto onde é construída anualmente a estrutura do Camarote Skol, sede do longa.
O problema não é apenas o bate e volta. Sair do circuito do Carnaval é uma tarefa árdua para motoristas de táxi, ônibus e van. Todo mundo sabe, inclusive Bruna Marquezine e Carlinhos Brown, que o transporte mais eficiente para transitar em Salvador durante a folia é o mototáxi.
Ainda sobre o trânsito, não existe a possibilidade de trafegar na região do Dique do Tororó sem enfrentar um engarrafamento. Ver os orixás só de passagem como no filme? Só se for durante a semana e em um horário fora de pico. A tradição mesmo é passar horas preso no congestionamento.
O afoxé Filhos de Gandhy, constituído exclusivamente por homens e inspirado nos princípios de não violência e paz do ativista indiano Mahatma Gandhi (1869-1948), tem o vestuário famoso. Mais famoso ainda do que os lençóis e toalhas brancos como fantasia são os colares em contas azuis e brancas. Eles foram ressignificados com o passar dos anos e viraram uma espécie de escambo carnavalesco: um colar por um beijo.
Ao fim da folia, é comum vermos soteropolitanos contabilizando o número de colares, ou de beijos, trocados. Mas a brincadeira passou despercebida até para a personagem de GKay, a mais beijoqueira entre as amigas viajantes.
divulgação/netflix
Gkay vive a beijoqueira Michele em Carnaval
Para Carnaval ter mais a cara da folia de Salvador, uma boa ideia para o roteiro seria ilustrar a anual gripe carnavalesca no filme. Após os festejos, uma virose toma conta da capital baiana e, carinhosamente, é batizada com o nome da música mais tocada no ano.
Lepo Lepo (de Psirico), Dalila (Ivete Sangalo) e Santinha (Léo Santana) já foram alguns nomes de batismo do vírus gripal. No caso de Carnaval, a sugestão seria Intimidade com o Chão, hit de Freddy.
Nada de drinques! O que não pode faltar no Carnaval raiz mesmo é a "piriguete". Quem gosta de "comer água" (beber muito) durante a folia sabe que é o melhor custo-benefício para curtir a farra alcoólica nos blocos de rua. Nas mãos dos camelôs, três latinhas de cerveja custam R$ 5.
E um pega-turista original do Pelourinho é pintar o viajante para a Timbalada. A situação ficou bem conhecida no filme Ó Paí, Ó (2007), quando Rosa (Emanuelle Araújo) pede ajuda de Roque (Lázaro Ramos) para curtir o bloco. Ainda hoje, jovens ficam com tinta e pincel em mãos à espera de turistas empolgados a serem pintados --em troca de alguns trocados, claro.
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