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PRATICADO POR PERCY

O que é sadomasoquismo? Verdades Secretas 2 erra e reforça estereótipos

FOTOS: REPRODUÇÃO/GLOBOPLAY

Com cara de sofrimento, Angel (Camila Queiroz) está deitada e com as mãos amarradas em cena da novela Verdades Secretas 2

Angel (Camila Queiroz) é amarrada por Percy (Gabriel Braga Nunes) em Verdades Secretas 2

DÉBORA LIMA

debora@noticiasdatv.com

Publicado em 29/10/2021 - 6h40

Alardeada como uma trama picante e com mais cenas de sexo do que a primeira parte, Verdades Secretas 2 mergulha no mundo do sadomasoquismo por meio de Percy, personagem de Gabriel Braga Nunes. No entanto, a abordagem é muito rasa e acaba por reforçar estereótipos e preconceitos. A novela comete uma série de equívocos nas sequências que contêm a prática do BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo).

Nos primeiros dez capítulos disponibilizados no Globoplay, Percy é apresentado como um homem com "gosto estranho" na hora da transa. O dono da boate contrata os serviços de book rosa de Angel (Camila Queiroz), mas em nenhum momento explica para a modelo a sua preferência.

O empresário nem mesmo pergunta se a jovem concorda em ter uma relação que inclui cordas, vendas, tapas e mordidas pelo corpo. "Não se mova, não tente fugir, você é minha", ordena ele, antes de tapar os olhos da protagonista. Essa falta de diálogo é um dos primeiros equívocos cometidos na história, já que é essencial que se acerte antes todos os detalhes.

"O BDSM tem uma base que norteia quais tipos de fetiches são considerados aceitos na comunidade. Essa base é o SSC. Só é aceito o que for considerado entre os praticantes como são (que não prejudique a saúde, inclusive mental), seguro e consensual. Essa linha é muito importante. Principalmente o consensual", esclarece a adepta Sofia*, de 31 anos.

"O 'acordo' é definido no começo de uma relação, numa fase que chamamos de negociação. Nesta fase, são estabelecidos os limites de ambas as partes. E não existe limite para estes limites, sendo que fazem parte do que é estritamente pessoal. Vale tudo que seja são, seguro, consensual, legal e que não incomode o vizinho", completa Master Gladius, responsável pelo canal Diário de um Dominador, no YouTube.

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Angel se sente mal ao ser amarrada

Linha tênue entre prazer e abuso

Justamente por Percy não estabelecer limites nem explicar mais a relação sadomasoquista com antecedência, Angel se sente humilhada durante a transa. "Se isso não for conversado, pode gerar um trauma muito grande. É muito importante que exista concordância, diálogo e noção dos limites e gostos do outro", ressalta Marina*, adepta de 23 anos.

"Práticas do BDSM fazem uma linha tênue entre uma relação saudável e uma relação de abuso. Existem regras básicas e consensuais entre os praticantes.  A safeword ou palavra de segurança existe para resguardar os praticantes quanto a seus limites pessoais e devem ser sempre respeitadas", explica a psicóloga e sexóloga Lara Andrade Coutinho.

Na novela, o personagem de Gabriel Braga Nunes também não orienta as mulheres sobre a possibilidade de utilizar uma palavra que interrompa o ato. "É fundamental os participantes definirem isso antes de começar qualquer interação. O uso da palavra de segurança significa que você está retirando naquele momento o seu consentimento. Ou seja, o SSC deixa de existir, e o outro praticante tem obrigação de parar imediatamente todas as práticas. Qualquer coisa feita após o uso desta palavra é abuso. Isso não é aceito por ninguém na comunidade, é crime", afirma Sofia.

Percy ainda questiona se a modelo o considera doente por conta de suas "fantasias" --o que novamente reforça preconceitos. Em um outro momento da história escrita por Walcyr Carrasco, Chiara (Rhay Polster) se assusta ao ser amarrada pelo ricaço sem aviso. "Agora você vai ser minha escrava. Você vai gostar", sussurra ele. "Me solta, eu tô mandando. Sai daqui, seu maluco", grita a jovem, em desespero.

Por apenas impor seus "gostos", o personagem pode se enquadrar no chamado "red flag", termo usado para se referir a comportamentos abusivos. "Sempre tem gente abusiva em todo lugar. Escolheram alguém abusivo para retratar e colocaram o BDSM para enfatizar que a pessoa não é normal. Clichê. Tem formas saudáveis de ser BDSM e não é nada dessa que vemos nos filmes e séries", alega Estela*, adepta switcher (que alterna os papéis de dominadora e submissa) de 33 anos.

"Explorar nossa sexualidade é algo positivo, e o BDSM pode ser uma porta de entrada para novas descobertas. Mas temos que ter cuidado, sendo assim, pessoas que têm uma maior dificuldade no controle da força/agressividade ou pessoas que não estejam verdadeiramente dispostas a ter uma troca mútua de prazer talvez devessem ser mais cautelosas antes de propor tais práticas", orienta a psicóloga.

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Percy com Chiara na novela

Representação estereotipada

Antes mesmo de a novela estrear no Globoplay, Walcyr Carrasco comentou que exploraria através de Percy o sadomadoquismo. "A questão da venda do corpo pode ultrapassar os limites do que é psicologicamente e fisicamente saudável. É o que o mostro nessa relação", explicou ao Gshow.

Porém, ao ficar na superficialidade do tema, o novelista apenas reforça estigmas. "É comum que isso aconteça para chamar a atenção, gerar um sensacionalismo, e acaba retratando de forma equivocada e prejudicando a comunidade, porque o público em geral acaba achando que quem pratica BDSM são pessoas muito diferentes delas", diz Hugo, de 30 anos.

Ele também é um dos responsáveis pelo podcast Chicotadas, que fala sobre BDSM, não monogamia e sexualidades alternativas. O podcaster explica como as produções midiáticas poderiam melhorar para combater preconceitos:

Seria importante parar de retratar praticantes como pessoas 'com problemas' e deixar claro que desejos sexuais diferentes não mudam o caráter de ninguém nem suas capacidades éticas e profissionais, é apenas uma parte da personalidade das pessoas. Gostaria que mostrassem cenas e personagens mais fidedignos, que vivem essas dinâmicas BDSM parte do tempo, mas que não são só definidos por isso.

"A mídia faz um verdadeiro desserviço não apenas ao BDSM, mas ao sexo como um todo. Sempre vemos essa imagem do homem se utilizando do corpo feminino como se fosse um objeto, sem que a mulher tenha direito à opinião. Se só uma pessoa está se divertindo, alguma coisa não está certa. Esse tipo de retrato acaba normalizando abusos e distanciando as pessoas do erotismo", opina Marina.

"No BDSM, buscamos obter o prazer dos dois ou mais envolvidos, cada um à sua maneira. Temos uma conversa longa sobre o que cada uma das pessoas gosta, espera, sabe fazer, tem de material, como estão de saúde mental e física, além do fato de que muitas vezes a penetração ou orgasmo pode nem ocorrer, o foco fica em outras coisas, como o prazer da experiência", esclarece Hugo, que se identifica como switcher, mas tem preferência por ser submisso.

Proteção e confiança

Assim como no sexo "comum", chamado de baunilha na comunidade BDSM, é necessário que haja uma relação de confiança entre os envolvidos. "Não conto para ficantes que eu sou adepta do sadomasoquismo. É uma forma de me manter segura, já que para mim a confiança é fundamental para realizar a prática", afirma Renata*.

"Deixar uma pessoa te amarrar, te amordaçar, te colocar uma venda... Se não confiar que ela vai respeitar o combinado e seus limites, fodeu", alerta Estella. "Tem que ter muito cuidado, porque tem gente ruim. Tive sorte que o encontro com o meio foi através de uma pessoa ética. É muito perigoso, infelizmente. Depois que está amarrada, você pode ser morta", reforça Jéssica, de 28 anos.

O uso de métodos de prevenção à gravidez e a doenças sexualmente transmissíveis também é discutido pelos adeptos do BDSM. "Se uma pessoa te pedir pra não usar camisinha, fuja! A atenção com o outro faz parte do erotismo. Eu, particularmente, me sinto muito mais confortável com alguém que respeita e preza pela saúde sexual, física e psicológica. Não há nada mais interessante do que uma pessoa responsável e esclarecida", analisa Marina.

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Percy utiliza venda em Angel

"Já ouvi homens que se dizem dominadores querendo impor o não uso de camisinha. Mas atualmente existe uma presença feminina muito forte (até mesmo feminista), e a esmagadora maioria tanto de homens quanto de mulheres entende que isso faz parte da negociação. É visto como ultrapassado e com maus olhos pela maioria quando alguém aparece querendo impor regra de não usar", comenta Sofia.

Diferença entre sadomasoquismo e BDSM

Apesar de muitas vezes serem utilizados como sinônimos, tais termos têm significados diferentes na comunidade, como explica a sexóloga Lara:

O sadomasoquista tem seu interesse mais direcionado a trocas de sensações e dores obtidas nas relações de prazer entre os parceiros. Já o BDSM é uma sigla 'guarda-chuva' que abrange diversas práticas sexuais, como restrição de movimentos, castigos, uso de amarras, relações de poder e submissão, além do sadomasoquismo.

"BDSM é todo um universo no qual as pessoas se completam de forma sexual e/ou afetivamente num ambiente de jogos de poder, ou seja, em que exista hierarquia entre as partes. A sigla é um acrônimo que engloba três siglas: BD é bondage (aprisionamento) e disciplina. DS, dominação e submissão. E SM, sadomasoquismo", complementa Master Gladius.

"Práticas que envolvem imobilização, golpes com equipamentos adequados para tal, interpretação de papéis, velas, etc., servem apenas e tão somente para enfatizar a diferença de poder entre as partes, não sendo de forma alguma obrigatórios em um tipo de relação que se resume a uma pessoa dominando outra", ressalta ele.

REPRODUÇÃO/UNIVERSAL PICTURES

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Anastasia (Dakota Johnson) amarrada

BDSM e a franquia Cinquenta Tons de Cinza

Assim como acontece em Verdades Secretas 2, as práticas do BDSM foram retratadas de maneira estereotipada desde o lançamento do primeiro filme de Cinquenta Tons de Cinza, em 2015. Os longas da franquia mostram a relação entre o dominador Christian Grey (Jamie Dornan) e a submissa Anastasia Steele (Dakota Johnson).

"Em Cinquenta Tons de Cinza, que é referência pra população no geral, também rola uma ideia totalmente errada sobre o que é BDSM e sadomasoquismo", ressalta Renata. A sexóloga Lara aponta:

Esses filmes fazem uma leitura superficial e estereotipada dessa prática, além de romantizarem relações de abuso ou colocar o praticante enquanto alguém psicologicamente doente. Apesar disso, não podemos negar que de alguma forma são obras que trazem visibilidade à temática.

"Vejo o filme como um pornô leve e destinado a um público específico, retratando apenas uma relação apimentada apoiado nos estereótipos já conhecidos de quartos decorados e golpes de chicote. Como mérito, ele mostrou o quanto o mercado de literatura erótica estava carente e trouxe visibilidade ao universo BDSM. [Mas] nenhum dos dominantes que conheço se sente representado pelo protagonista do filme", problematiza Master Gladius.

Para quem quiser ver uma produção que retrata o BDSM de maneira saudável, Estela e Hugo indicam Professor Marston e as Mulheres-Maravilhas (2017), disponível no Prime Video. O longa conta a história real do psicólogo William Moulton Marston (1893-1947), que criou a personagem Mulher-Maravilha. Ele mantinha uma relação poliamorosa com a mulher, Elizabeth Marston (1893-1993), e Olive Byrne (1904-1990), uma ex-aluna.

Confira o trailer:


*Os nomes das entrevistadas foram trocados a pedido delas por uma questão de privacidade.


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