SENHOR TV
REPRODUÇÃO/GLOBONEWS
Flávio Cavalcanti Júnior em entrevista para a GloboNews, em 2019: livro tenta limpar a barra do pai
Filho do apresentador Flávio Cavalcanti (1929-1986), um dos maiores comunicadores da história da televisão brasileira, Flávio Cavalcanti Júnior lançou um livro para relembrar memórias e mudar um pouco a fama que o pai tem com as novas gerações de reacionário, apoiador da Ditadura Militar (1964-1985) e raivoso. "No ar, papai era uma pessoa um pouco diferente do que era em sua vida pessoal", diz em conversa ao Notícias da TV.
Com o título Senhor TV (Matrix Editora; 200 páginas, R$ 46), o livro conta a relação de pai e filho pela perspectiva mais familiar. Também passa pelas polêmicas de Cavalcanti, como o período em que ele foi retirado do ar pela Censura Federal em 1973 durante 60 dias após apresentar em seu programa na extinta TV Tupi (1950-1980) um homem que havia "emprestado" a mulher para o vizinho.
Para o filho de Cavalcanti, o pai sempre foi uma figura diferente do que era na TV. Se frente às câmeras era tachado de sensacionalista e tinha presença forte no vídeo, na intimidade o jornalista era uma figura tímida e até brincalhona. "Ele era mais solto em casa, engraçado, contador de causos, de piadas, enfim... Tinha uma vida bem mais descontraída e bem menos formal do que na televisão", explicou.
Para Júnior, seu pai leva uma fama errada e que ele quer tentar mudar com a publicação. Mesmo que tenha se orgulhado de apoiar a tomada a força do poder pelos militares em 31 de março de 1964, ele diz que seu Cavalcanti abandonou o apoio após ver que não haveria a liberdade prometida no início do regime.
"Papai teve duas fases em relação à revolução [Nota da Redação: o entrevistado usa o termo 'revolução' para se referir à Ditadura Militar]. A primeira ele apoiou, naqueles primeiros momentos, ele apoiou. A expectativa é que se teria eleições no ano seguinte, em 1965. Mas quando os direitos políticos de todos foram cassados e as eleições canceladas, o velho se afastou dos militares. Mas aí já era tarde demais", completou.
Flávio Cavalcanti morreu em 26 de maio de 1986. Quatro dias antes, passou mal ao vivo enquanto apresentava o seu programa no SBT. Saiu dos estúdios direto para um hospital em São Paulo, mas não voltou para casa. "A morte de papai obviamente foi o pior momento da minha vida", desabafou o filho.
Confira a entrevista completa com Flávio Cavalcanti Júnior:
Notícias da TV - Qual é o seu principal objetivo com a publicação do seu trabalho?
Flavio Cavalcante Júnior - A respeito do livro Senhor TV, estava sentindo a necessidade de recuperar a memória de Flávio Cavalcanti, meu pai. Já faz 36 anos que ele morreu, e as pessoas vão amadurecendo, envelhecendo, crescendo, e as referências vão ficando para trás. Então resolvi fazer isso.
Acho que ele tem muita história boa para contar, e o livro é cheio de histórias. O livro é cheio de histórias, não é uma biografia formal, mas uma narrativa dos momentos bons, maus, alegres e tristes, que papai e eu vivemos juntos. Acho que as histórias são muito boas. Esse foi o objetivo do livro, que parece estar sendo alcançado, pois os comentários são bastante positivos.
Seu pai era um apresentador de palavras firmes, mas ao mesmo tempo muito tímido. O que aparecia no ar era de fato um personagem Flávio Cavalcanti ou uma face dele que só quem o assistia conhecia?
No ar, papai era uma pessoa um pouco diferente do que era em sua vida pessoal, em casa e com os amigos. Ele era mais solto em casa, engraçado, contador de causos, de piadas, enfim. Tinha uma vida bem mais descontraída e bem menos formal do que na televisão. Ele era um jornalista e gostava muito de polêmica. Muito mesmo. A polêmica era uma raiz dele.
Quer dizer, ele gostava de levar assuntos que as pessoas discutissem depois. Aprovando ou não. Ele queria tirar as pessoas da rotina e do conforto do sofá de casa. Acho que ele atingiu esses objetivos. Fez um belíssimo trabalho de defesa da música popular brasileira, elogiando e lançando grandes compositores, grandes intérpretes e esculhambando o que tem de ruim e podre na música brasileira. Acho que ele deixou essa marca importante.
Seu pai era apoiador do Regime Militar que governou o Brasil durante 24 anos. Porém, foi retirado do ar durante 60 dias pela Censura Federal por mostrar o caso de um homem que teria 'emprestado' a mulher para o vizinho. Qual era a relação verdadeira de Flávio Cavalcanti com os militares?
Papai teve duas fases em relação à revolução [sic]. A primeira ele apoiou, naqueles primeiros momentos, ele apoiou. Ele era muito ligado ao Carlos Lacerda (1914-1977), que na ocasião era governador do até então Estado da Guanabara (hoje, Estado do Rio de Janeiro). Ele, junto com o Lacerda e outros civis, apoiaram achando que o Brasil estava virando uma bagunça. Depois ele foi se colocando contra. Quando tudo aconteceu lá em março, para o final de março e abril de 1964, a perspectiva era de que no ano seguinte, em 1965, haveria uma eleição para presidente da república. Isso estava na Constituição.
Papai estava muito entusiasmado com essa eleição, porque teria dois candidatos fantásticos. Juscelino Kubitschek (1902-1976), que seria candidato para tentar voltar ao governo; e Carlos Lacerda. Seria uma eleição maravilhosa, polêmica e cheia de ideias. Uma campanha muito boa. Os debates seriam excepcionais, pois eram duas pessoas muito inteligentes e bem-preparadas.
Quando os militares frustraram a sociedade brasileira, acabando com as eleições diretas para presidente, governador e até para prefeito das grandes cidades, o velho se afastou. Mas já era tarde demais. Já no final da vida, em nossas conversas, ele falava sobre seu arrependimento de ter apoiado aquele movimento.
Queria muito ouvir o seu relato do dia em que seu pai morreu depois de fazer o seu programa no SBT. Como você ficou sabendo e como aquela situação tocou sua família?
A morte do papai obviamente foi o pior momento da minha vida. Ele estava no ar, fazendo o programa dele lá no SBT, o Programa Flávio Cavalcanti. Acho que era uma quinta-feira. Ele estava no ar, e eu nessa época trabalhava em Brasília, era diretor de uma agência de publicidade, a Artplan Publicidade, do Roberto Medina, meu amigo e criador do Rock in Rio. Lá por volta das 23h30, minha irmã Fernanda, que infelizmente já morreu, liga dizendo que papai tinha tido um problema no palco.
Eu não estava assistindo ao programa naquela noite, estava dormindo. Ela ligou para dizer que papai havia passado mal no palco, estava suando muito, com dores no peito. Ela, que estava lá nos estúdios, chamou uma ambulância e ele foi internado. Os primeiros laudos médicos disseram que era uma coisa tranquila, que ele tinha tido uma isquemia leve e, que ficaria de três a quatro dias internado para se recuperar, voltar para casa, retomar a vida e tal. O médico disse que eu não precisaria sair de Brasília e vir para São Paulo, pois estava tudo tranquilo.
Crédito
Flávio Cavalcanti em seu programa na TV Tupi (1950-1980)
Mas sei lá, me deu vontade de ir, pois teria um feriadão logo no início da semana seguinte. Sendo assim, peguei minha mulher e filha e fomos para São Paulo ficar com ele lá no hospital, visitá-lo e dar apoio à mamãe, que já estava mal de saúde naquele momento. Ela morreu um ano depois dele, pois tinha gravíssimos problemas circulatórios.
Todos nós, filhos e papai, pensávamos que ela fosse morrer antes dele, porque ele não tinha nada de problemas de saúde. Nós jogávamos tênis nas quadras de São Paulo, e ele atuava muito bem. Quando cheguei a São Paulo, fui direto para o hospital em que ele estava internado na UTI, e senti que ele estava muito deprimido. Ele falou comigo com uma cara triste e pesada, sabe? Foi esquisito.
Dei força, aquela coisa de filho: "Pô pai, você vai sair dessa, fica bem". Só que, aí, a coisa foi evoluindo. No terceiro dia, ele estava para receber alta, quando teve a trágica parada cardíaca ainda internado no hospital. Na véspera... Na hora de receber alta, ele teve uma parada cardíaca e não voltou. Foi um momento terrível.
Flávio Cavalcanti era um crítico de música feroz e costumava quebrar discos que achava de baixa qualidade. Com a realidade da música brasileira de hoje, como acha que seu pai iria se comportar no programa dele?
A respeito da música de hoje, certamente ele não ia gostar nadinha. Infelizmente não existem mais discos, se não ele continuaria quebrando discos com essas músicas de hoje, com suas honrosas exceções de um lançamento do Chico Buarque aqui e uma música do Caetano Veloso e Gilberto Gil ali (risos).
Claro que tem exceções, como Martinho da Vila, mas em sua grande parte, a música brasileira está muito chata. Ele certamente criticaria muito e não estaria nada feliz com ela, morrendo de saudades de Tom Jobim (1927-1994), Vinicius de Moraes (1913-1980) e de outros monstros da música brasileira, como Noel Rosa (1910-1937), e por aí vai.
Como entende que seu pai veria a realidade do Brasil de hoje, com preços caros, inflação nas alturas e as críticas ao governo de Jair Bolsonaro?
Eu não posso jurar qual seria o comportamento do papai com relação ao momento político que o Brasil vive hoje. Eu tenho um horror do que está acontecendo no país, mas fica muito complicado para mim. Não sei qual seria a posição dele e se ele teria um pouco mais de simpatia do que eu, na visão do governo brasileiro atual.
Não queria assumir essa responsabilidade ou irresponsabilidade de colocar as palavras dele em minha boca nesse instante. Quer dizer, quais seriam as palavras dele. Acho que o momento é muito ruim e que o Brasil está precisando passar por uma grande renovação na política. Acho difícil que aconteça, mas espero que isso ocorra nas próximas eleições em outubro.
Entre o fim dos anos 1960 e 1970, Chacrinha (1917-1988) e seu pai viveram batalhas épicas de audiência com seus programas nas noites de domingo. O caso Sete de Lira (em 29 de agosto de 1971, Chacrinha passou na frente de Flávio Cavalcanti e roubou sua convidada, uma mãe de santo que incorporava uma manifestação de exu, segundo a Umbanda) é o capítulo mais clássico dessa batalha. Como era a relação do Velho Guerreiro com ele? Eles conversavam?
Sobre a relação dele com o Chacrinha, praticamente não havia. Eles se conheciam, obviamente, se respeitavam, mas tiveram poucos contatos pessoais ao longo da vida profissional deles. Eu me dava bem com Chacrinha e me dou bem com os filhos dele até hoje. De vez em quando ia à casa dele para visitar e conversar. Era uma pessoa encantadora.
A concorrência era algo saudável, havia três grandes comunicadores naquele momento: Chacrinha, Silvio Santos e papai. Cada um com seu estilo. O Silvio com aquela simpatia que o caracteriza, aquele vozeirão lindo, aquela animação e alegria. O Chacrinha era o grande palhaço, no sentido carinhoso da palavra, da televisão brasileira. Ele levava muita alegria, animação e bacalhau para a plateia. Era uma figura do cacete, muito boa.
Papai tinha seu estilo meio durão, mas os três foram igualmente grandes comunicadores e responsáveis pelo crescimento da televisão brasileira. Os três eram líderes de audiência em seus respectivos horários. A população os adorava. Os criticava, mas os adorava. Acho que eles fizeram muito bem para a televisão. A TV estava mais quente, né? As pessoas se empolgavam mais ao assisti-la. Hoje em dia ela está muito modorrenta.
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