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OPINIÃO

Centenário de Ruth de Souza: TV não valorizou a grande atriz negra em vida

Divulgação/TV Globo

A atriz Ruth de Souza sorri em foto posada, ela veste uma camisa social rosa

A atriz Ruth de Souza em foto de arquivo; veterana completaria 100 anos nesta quarta-feira (12)

MIGUEL ARCANJO PRADO

pauta.arcanjo@gmail.com

Publicado em 12/5/2021 - 6h45

Ruth de Souza, a grande atriz brasileira, completaria 100 anos nesta quarta-feira (12). Porém, a artista carioca nascida em 12 de maio de 1921 morreu aos 98 anos, em 28 de julho de 2019, deixando uma enorme comoção e também uma certa dose de indignação.

Na época, muito se lamentou tamanha perda, mas foi importante ressaltar que Ruth foi uma atriz que teve menos oportunidades do que merecia na televisão, sobretudo diante de seu farto talento. E esse boicote silencioso à sua carreira e à sua inegável capacidade em interpretar variadas personagens aconteceu pelo fato de Ruth de Souza ser negra.

Afinal, Ruth foi pioneira nas artes, com o feito internacional de ser a primeira atriz brasileira da história a receber indicação a um festival internacional de cinema --no caso o Leão de Ouro do Festival de Cinema de Veneza, em 1954, pelo filme Sinhá Moça.

O prêmio acabou nas mãos da alemã Lili Palmer, assim como aconteceria 45 anos depois com Fernanda Montenegro, quando esta perdeu o Oscar de melhor atriz em 1999 para a estadunidense Gwyneth Paltrow.

Ruth ainda foi a primeira mulher negra a protagonizar uma novela, A Cabana do Pai Tomás, em 1969, na Globo, a mesma que contava com um ator branco, Sergio Cardoso (1925-1972), fazendo blackface para interpretar o protagonista negro --na época, houve manifestações na imprensa de que o papel deveria ter ficado com Milton Gonçalves.

Neste folhetim, Ruth sofreu nos bastidores pela posição de destaque na trama: "Algumas atrizes brancas não queriam que o nome delas ficasse atrás do meu nos créditos", revelou ela ao jornal Tribuna do Paraná em 2004.

Não que Ruth fosse uma iniciante. Muito pelo contrário. Trajetória de peso ela já tinha, afinal, havia sido indicada em Veneza e sido a primeira artista negra a pisar no palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1945, com a peça O Imperador Jones. E ainda tinha integrado o histórico Teatro Experimental do Negro na década de 1940, ao lado de Abdias do Nascimento (1914-2011).

Mas, o preconceito, desdobramento do racismo estrutural brasileiro, sempre foi um empecilho para que a carreira de Ruth crescesse e tomasse a dimensão que ela merecia por mérito de seu talento.

Foi o racismo que não permitiu que ela ganhasse grandes protagonistas ou personagens de maior peso nas novelas, e boa parte de sua carreira foi construída com papéis subalternos, como o de empregadas domésticas ou escravas, além de inúmeras pontas.

Era para Ruth de Souza ter sido tratada em vida com o mesmo peso de uma Fernanda Montenegro, não só pelos seus pares de trajetória artística, como pelo mercado e pela mídia de entretenimento como um todo. Mas não. Apesar de ser reverenciada, sobretudo pelos negros, Ruth, em boa parte de sua carreira, nunca teve status de estrela de primeira grandeza.

É importante lembrar que, mesmo prejudicada pelo fato de ser negra, Ruth jamais entrou na amargura que tal fato poderia provocar em sua vida. Muito pelo contrário, aceitou com profissionalismo e toda a dignidade do mundo todas as personagens que conquistou, emprestando às mesmas a altivez de seu talento incomensurável --entre outros papéis que a TV lhe ofereceu, está o de mãe do Mussum, em Os Trapalhões, em 1986, mesmo ano no qual brilhou como a Balbina, a Bá, da novela Sinhá Moça, este sim um dos grandes personagens que a TV lhe conferiu.

Faltou a Ruth de Souza que novelistas, diretores e mandatários da indústria cultural nacional lhe dessem papéis condizentes com seu talento e peso histórico, assim como fizeram com nomes de sua geração como Nathalia Timberg e Fernanda Montenegro.

Se hoje vemos uma presença maior de profissionais e artistas negros na televisão e mesmo na mídia em geral, grande parte disso se deve à persistência de negros pioneiros como Ruth de Souza, que não esmoreceram diante dos "nãos" levados e seguiram em frente, do jeito que dava, abrindo caminho a facão na selva do racismo brasileiro.

Se hoje temos no time de primeira grandeza da TV nomes como Lázaro Ramos ou Taís Araujo, é porque antes existiu Ruth de Souza e tantos outros pioneiros. É dever de todos nós valorizar tais nomes e respeitar seus legados. E é preciso aqui ressaltar que Lázaro e Taís demonstraram gratidão genuína quando convidaram Ruth em 2018 para participar da série Mister Brau, sua última aparição na TV.

É também importante ressaltar outra herdeira direta de Ruth de Souza e de geração anterior à de Lázaro e Taís: a também grande atriz Zezé Motta, hoje com 76 anos, outra que merece ser valorizada. Não custa lembrar que, na novela Corpo a Corpo (1984), na qual era filha de Ruth, Zezé viveu a arquiteta Sonia, que sofria preconceito não só na trama como também do público racista, por namorar o herdeiro branco Claudio, papel de Marcos Paulo (1951-2012).

Nesta novela, Ruth de Souza pôde interpretar uma mãe de família de classe média, fazendo par com Waldir Onofre (1934-2015), mas viu seu núcleo e o amor da personagem de sua filha sofrerem rejeição por parte do público, o que foi um golpe duro aos negros do elenco.

Ao ver o sofrimento da personagem que era sua filha, de ser rechaçada pelo povo apenas pelo fato de ser negra, Ruth de Souza certamente precisou encarar parte de sua própria história. E não deve ter sido fácil.

Que o legado imenso deixado por Ruth de Souza sirva de lição para nossa sociedade e indústria do entretenimento, que deve se tornar inclusiva, diversa e antirracista. Esta seria a maior homenagem que o Brasil poderia conceder a Ruth de Souza em seu centenário.


Este artigo não reflete necessariamente a opinião do Notícias da TV.


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