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PRESOS NO PASSADO?

Remake de Pantanal reforça estigma antigo e ignora indígenas do século 21

REPRODUÇÃO/TV GLOBO

Dira Paes tem a expressão desconfiada, com os cabelos amarrados em um rabo de cavalo lateral frouxo. Uma das mãos está pousada sobre uma cerâmica em cena de Pantanal

Filó (Dira Paes) usa cerâmica terena; objeto foi uma das únicas referências aos indígenas

SABRINA CASTRO

sabrina@noticiasdatv.com

Publicado em 11/9/2022 - 8h40

Cerca de oito etnias indígenas ocupam os territórios do Mato Grosso do Sul. Ainda assim, nenhum dos personagens de Pantanal pertence a esses grupos. Filó (Dira Paes) até usa acessórios de ascendência terena, embora isso nunca tenha sido tema das conversas. É como se o povo tivesse mandado seus objetos de arte direto do passado e não estivessem ali do lado, naquela região, em 2022.

É uma falha de Bruno Luperi, que se propôs a abordar pautas sociais que ganharam relevância nos últimos anos. De uma versão mais empoderada de Zaquieu (Silvero Pereira) à representatividade negra na família de Tenório (Murilo Benício), o autor renovou as passagens defasadas de 1990. A pauta indígena, latente no Estado em questão --o Mato Grosso do Sul só perde para o Amazonas em relação à população indígena--, ficou de fora. 

"A telenovela acopla as mudanças da sociedade muito lentamente. Se a representatividade abrange todas as etnias e grupos sociais, eu acredito que existem alguns movimentos mais presentes do que outros. Os movimentos negro, feminista e LGBTQIA+ avançaram muito. Tentaram colocar alguma coisa sobre transtornos mentais, mas, mesmo assim, de forma estereotipada. Já a questão indígena é uma das menos contempladas", analisa Clarice Greco, ex-pesquisadora do Centro de Estudos de Telenovela da ECA-USP (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo).

Mas como mudar isso? Para a especialista, a discussão precisa ser amadurecida pela própria sociedade. Mas também é uma via de mão dupla. As novelas, afinal, ajudam o público a digerir certos temas --o chamado "merchandising social". E não é como se a equipe não conhecesse a pauta indígena. Os responsáveis pela cenografia e pelo figurino usaram cerâmicas da etnia terena, uma das oito que compõe o Estado. Mas só isso não basta.

"Eu senti falta de um personagem que fosse realmente indígena dentro da novela, uma vez que a gente faz parte até como serviço braçal dentro das grandes fazendas. E a única forma de homenagear o indígena dentro da novela foi através da cerâmica? Eu vejo que isso não é o suficiente para mostrar a diversidade étnica do Estado de Mato Grosso do Sul", opina Tauan Corrêa Gonçalves, indígena terena e morador de Aquidauana, onde o folhetim se passa.

No centro da questão

A pesquisadora da UEMS (Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul) Léia Teixeira Lacerda explica que, além dos terena, povos como os guató, kadiwéu e kinikinau compõem o espaço que hoje é chamado de Mato Grosso do Sul. Cada um deles participou ativamente da construção do Estado, inclusive antes da divisão entre Mato Grosso e seu "parente" do sul. Desde a Guerra do Paraguai (1864-1870), em que os povos lutaram do lado do Brasil, até a ascendência da própria agropecuária, tema do folhetim.

Corrêa destaca os inúmeros indígenas que prestam serviços como peões ou lavradores nas imediações. Mas também não deve diminui-los unicamente ao trabalho braçal: eles são políticos, cientistas, enfermeiros e o que mais quiserem.

A gente teve que ser maleável, e todas as tecnologias estão adentrando nos nossos territórios. E precisamos saber lidar com toda essa evolução mesmo. Porque, se a gente tivesse a mesma mentalidade que 522 anos atrás, possivelmente não haveria nenhuma comunidade indígena presente hoje.

A decisão teve raízes históricas. Após a Guerra do Paraguai, fazendeiros e militares invadiram a região do Mato Grosso em massa. Dom Pedro 2º (1825-1891) presentou essas pessoas pelos serviços prestados nas batalhas, e, a partir daí, ficou insustentável para os indígenas viverem sem considerar a presença dos brancos.

Os povos precisaram se reformular --e uma das estratégias tem tudo a ver com a novela. O gado marruá, chamado de "gado verde" pelos nativos, tem muita relação com a mão de obra e costumes terena. Ou seja: o principal mito fundador dos Leôncio tem dedo indígena. Mas, na novela, o debate fica preso ao presente e futuro do agronegócio.

"Parece que as fazendas, a monocultura e as grandes criações de gado são a beleza do Pantanal. Não. A beleza do Pantanal está na preservação do meio ambiente, da fauna e flora, das culturas como um todo, respeitando cada diversidade étnica e a mãe natureza. A monocultura infelizmente é uma realidade dentro do nosso cotidiano e, se a gente souber utilizá-la de forma sábia, ela traz grandes benefícios na sociedade. Mas não dá deixar para trás essas questões sociais", afirma o indígena.

Indígena de celular?

Passaram-se mais de 130 anos da Guerra do Paraguai, mas ainda há quem pense que todos os povos indígenas vivem exatamente como na época da invasão do país, em 1500. Por isso, não é incomum que os indígenas ainda tenham de aturar pessoas não indígenas chocadas com coisas simples, como o fato de eles terem celulares. Isso sem contar outras situações de bullying e preconceito, que atravessam o caminho destas pessoas assim que elas saem das aldeias.

"Quando a gente vai para o ensino superior, por exemplo, encontramos dificuldades na fala, na escrita e principalmente nos costumes, uma vez que dentro do nosso territórios a gente só fala a língua terena. Infelizmente, com essa questão do preconceito dentro da sociedade não indígena, acabou que várias crianças que inicialmente eram para ser educadas com a nossa língua materna acabaram conhecendo somente a cultura não indígena", declara Corrêa.

Traumatizados, muitos terena passaram a transmitir para os filhos os costumes hegemônicos, em detrimento da cultura do próprio povo. Assim, mais um povo vai perdendo suas características, seus saberes ancestrais e suas tradições. Tauan luta para que isso não aconteça. Nos espaços em que frequenta, ele discute a manutenção de sua língua e tradição --e das outras 300 etnias indígenas do Brasil. Para isso, tem um perfil nas redes sociais em que divulga sua língua nativa.

Serena, mas você também é branca

A cerâmica citada no começo do texto é um sinal concreto dessa tramitação de saberes, embora não represente o povo em sua totalidade. "Esses objetos apresentam elementos da educação indígena passados de mães para filhas. Em cada etapa de tempo destinado à realização dessa atividade, elas aprendem algo sobre a cultura como um todo", explica Leia, pesquisadora de Aquidauana.

O problema é que o uso dessa peça sem uma contextualização adequada também dá margem para a visão arcaica.

A mídia costuma abordar o personagem indígena como um ser do passado, e, com isso, acaba alimentando dentro da mente da sociedade que o indígena não vive hoje em dia. Todas aquelas pessoas que se dizem indígenas nada mais são do que descendentes. Mas não, eu não sou descendente. A gente não é descendente. A nossa cultura ainda é viva, a nossa língua ainda é falada e os nossos costumes ainda são mantidos e passados de geração em geração.

Para piorar, poucas vezes atores indígenas foram escalados para esses papéis, mesmo que caricatos. Novo Mundo (2017) é uma das únicas exceções. Alma Gêmea (2005), por sua vez, representa o senso comum de maneira mais gritante.

A reprise no canal Viva, à luz dos debates de 2022, fez com que o espectador tomasse conta desses problemas --vide que o meme "Serena, você também é branca" viralizou nas redes sociais. A tal Serena, protagonista de Priscila Fantin, era indígena, e enchia o peito para mencionar o "povo da mata". Mas era interpretada por uma atriz branca, sem nenhuma relação com esses povos.

Serena (Priscila Fantin) em Alma Gêmea

Priscila Fantin como Serena em Alma Gêmea

À época, a justificativa era que a personagem foi fruto do caso entre uma mulher indígena e um garimpeiro. Por isso, a protagonista tinha a pele e olhos claros. Mas essa não é a questão --as características fenotípicas dos indígenas, afinal, nem sempre são iguais. Nem todos têm cabelos pretos e pele acobreada. O problema é a atriz não ter raízes indígenas.

Se a justificativa não explica a falta de representatividade, tampouco tem algum benefício na trama. "É uma reedição do mito da democracia racial, com as noções de harmonia plena entre os diferentes grupos que constituem o país. Mas basta olhar os confrontos vividos pelos povos indígenas, a degradação dos seus territórios, de suas culturas e, sobretudo, de suas vidas", afirma Léia.

Novos caminhos?

Ao menos, a representatividade teve alguns avanços, mesmo que a passos lentos. A própria Globo apoia o Lanani (Laboratório de Narrativas Negras e Indígenas para o Audiovisual), projeto da Flup (Festa Literária das Periferias). É uma iniciativa interessante, mas que ainda não atingiu o alto escalão da emissora. E nem as massas.

Para isso, a mídia precisa ampliar a voz dos indígenas, o debate precisa se fortificar e até as novelas têm que fazer sua parte. A juventude indígena já luta para reescrever a história de suas vidas em suas perspectivas. Agora, os demais grupos populacionais do país precisam olhar para além de seu umbigo.

"Se eu perguntar para você quantas comunidades indígenas existem na sua região, qual a resposta que eu receberia? Porque eu já fiz essa pergunta a vários não indígenas aqui na minha cidade, e eles não souberam responder, porque tem um completo desconhecimento em relação às culturas indígenas presentes ao redor da sua cidade. A gente não pode ser julgado como ser passado, mas presente e evoluído", finaliza o rapaz.

Escrita por Benedito Ruy Barbosa, a novela Pantanal foi exibida em 1990 pela extinta Manchete (1983-1999). O remake da Globo é adaptado por Bruno Luperi, neto do criador da história, e ficará no ar até outubro. Em seguida, a Globo vai estrear Travessia, trama de Gloria Perez.

Leia os resumos dos próximos capítulos da novela Pantanal.


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