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COLUNA DE MÍDIA

Por que a Globo deve abandonar o Globoplay: Quatro razões para o fracasso

DIVULGAÇÃO

Foto de divulgação do Globoplay, serviço de streaming da Globo; Regina Casé em destaque na imagem

Amor de Mãe, com Regina Casé, é uma das novelas disponíveis no Globoplay, streaming do Grupo Globo

GUILHERME RAVACHE

ravache@proton.me

Publicado em 11/11/2020 - 7h05

A Globo e a Disney anunciaram dias atrás uma parceria entre Disney+ e Globoplay. Para muitos, mostra a força do grupo brasileiro e prova que o Globoplay é uma vitoriosa estratégia de streaming. Mas discordo dessa visão. Vejo o movimento como um passo para o fim do Globoplay ou sua futura união com outro serviço como o Disney+ ou a plataforma de um grande player internacional. 

Questionar a estratégia do Globoplay soa como heresia. Afinal, quem duvidaria do futuro de uma iniciativa que no primeiro semestre deste ano teve aumento de 145% na base de assinantes e, em comparação com 2019, viu o total de horas de conteúdo consumidas crescer 224%?

E mais, segundo recente pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, Research and Markets e Conviva, o Globoplay seria o líder brasileiro em streaming, à frente de Netflix, Amazon Prime e todos os gigantes globais do setor.

Obviamente, o ideal seria termos os números de assinantes e horas consumidas do Globoplay, bem como a receita de assinantes, mas a Globo não os divulga. Vale lembrar que o Globoplay permite acesso gratuito a conteúdos, enquanto a Netflix é 100% pago.

Mas isso não diminui o mérito do Globoplay e também não nos impede de realizar um exercício de comparação e afirmar que a Globo está em vantagem no Brasil, mas ainda assim, há mais chances de fracasso do que de sucesso para o Globoplay em longo prazo. 

Quatro fatores serão determinantes para o fim do Globoplay:

  • "Custo Brasil" (empresas brasileiras usualmente estão em desvantagem frente a players globais);

  • limitação geográfica (a Globo é uma empresa majoritariamente local);

  • determinismo cultural (a mesma cultura vitoriosa que tornou a Globo o que é hoje dificulta sua adaptação);

  • unbundling do streaming (a consequente redução da margem operacional causada pela redução dos assinantes no cabo e queda de receita de anunciantes). 

Obviamente, esses aspectos não atuam de maneira isolada. Na verdade, o conjunto deles é que os fazem tão desafiadores. Mas abaixo separo os quatro pontos em tópicos para facilitar a análise:

Custo Brasil

Produzir conteúdo audiovisual de qualidade custa caro. Os filmes milionários de Hollywood sempre foram a regra. Mas o que dizer de The Crown? A série da Netflix custa quase R$ 75 milhões por episódio. A estimativa é que, em 2019, a Netflix tenha gasto R$ 86 bilhões em produções; a Amazon Studio, R$ 34,5 bilhões e a Apple, outros R$ 34,5 bilhões.

Notoriamente, empresas de tecnologia americanas são empresas de crescimento. Dessa maneira, a lógica dos investidores é que mesmo se elas tiverem prejuízo, mas estiverem crescendo, estão indo bem. Logo, o custo de capital é barato.

Com os juros de economias desenvolvidas próximos de zero, há uma fila de investidores querendo emprestar dinheiro para Netflix, Apple e Amazon. Em abril a Netflix captou US$ 500 milhões no mercado americano pagando juros de 3,625% e outros 470 milhões de euros (US$ 507 milhões) precificados a 3%, o menor juro de sua história. Nunca foi tão barato para a Netflix captar dinheiro para crescer.

Além das grandes multinacionais de tecnologia, quem entra na arena do streaming concorre com as grandes empresas de telecom (Vivo, Claro, Comcast, AT&T e tantas outras), que levam a vantagem de ter o controle da conexão e historicamente sabem trabalhar com altas dívidas (alavancadas) para realizar investimentos de infraestrutura.

Mas a Globo não poderia pegar dinheiro emprestado no exterior? Sim, poderia. Mas imagine você se sua dívida em um ano saltasse 44% sem você fazer nada. Bom, esse foi o aumento aproximado da dívida de empresas brasileiras com contas atreladas ao dólar. Em um ano o dólar saltou de R$ 4 para mais de R$ 5,75. E mais, bancos como o UBS já preveem o dólar a R$ 7,35 no final de 2021 em um cenário pessimista.

Então, sua dívida corre o risco de quase dobrar em dois anos (mesmo com sua receita permanecendo a mesma nestes dois anos, visto que você é pago em reais). Pior, muitos dos custos do Globoplay são atrelados ao valor do dólar. Tecnologia é um mercado global, e a disputa pelos melhores talentos e recursos acontece em escala global. Programadores podem morar no Brasil mas escrever códigos para empresas no exterior e receber em dólar.

E mesmo que todo o conteúdo da Globo seja produzido no Brasil, aproveitando o custo mais baixo do real e os salários proporcionalmente menores dos artistas e da equipe técnica em relação ao dólar, o custo de hospedagem do conteúdo em nuvem e a "banda" para transmiti-lo ainda é dependente de tecnologias majoritariamente precificadas em dólar.

E aqui a história na mídia brasileira oferece uma lição. No século passado (anos 1990), a editora Abril foi pioneira na internet brasileira fazendo coisas realmente inovadoras e com o padrão de qualidade que tornou suas revistas notórias.

Mas isso virou um problema. Em dado momento, a cada nova visita de um usuário aos seus sites, a empresa perdia dinheiro. O custo dos servidores e de banda (gasto com computadores que hospedam o conteúdo online e o valor da conexão destes computadores com os computadores dos usuários) era maior do que a receita com publicidade.

Ou seja, a cada visita aumentava o prejuízo. O plano era monetizar no futuro, mas ninguém esperava que o futuro fosse a falência. Certamente, a internet foi um de muitos erros que levaram à quebra da Abril (também havia considerável volume de empréstimos atrelados ao dólar), mas ilustra um problema clássico para diversas empresas no Brasil: receber em reais e gastar em dólares.

E se o dólar cair? Provavelmente os investimentos necessários para o crescimento não terão sido feitos, porque na dúvida, as empresas preferem não arriscar.

reprodução/globoplay

Globoplay e Disney+ anunciaram parceria

Limitação geográfica

Recentemente, a Globo promoveu a unificação de todo seu conteúdo, o pacote de assinatura Globoplay + Canais ao Vivo oferece programação e conteúdo ao vivo das propriedades da Globo. O preço de 49,90 chama a atenção. É mais caro do que a Netflix, porém mais barato do que uma assinatura de cabo (e parece reforçar a tese de que a TV linear está com os dias contados, e a Globo já busca a porta de emergência).

Porém, chama a atenção a quantidade de conteúdo que não está disponível em diferentes geografias, o que expõe a limitação dos atuais acordos de direitos da Globo. Além disso, conteúdo da Disney e demais produtores com streamings próprios vão desaparecer da grade da Globo em plataformas digitais. E isso significa perder os conteúdos mais buscados pela audiência.

A Disney deve encerrar em 2021 o contrato de exclusividade com a Globo para levar suas séries e filmes para o Disney+, que será lançado neste mês no Brasil. A parceria da Globo com o Disney+ pode ser um indício de uma concessão da empresa brasileira de abrir uma porta para uma parceria estratégica e até uma união. Mas, neste caso, se tornaria dono do negócio quem tem mais dinheiro (no caso, a Disney).

Por outro lado, a Globo ainda é acanhada no exterior. Está longe de ter uma presença global como Netflix, Amazon ou Apple e seus serviços de streaming. A novela Escrava Isaura é um marco, e a Globo vende muito conteúdo internacionalmente, mas pergunte a um estrangeiro o que é Globoplay ou Globo e ninguém saberá do que se trata.

E se você não é reconhecido no exterior, dificilmente conseguirá construir uma plataforma global e com escala suficiente para concorrer com os grandes players.

Não estar no exterior tem outra desvantagem. Empresas de atuação global tem hedges (defesas) naturais para variações cambiais. Se o dólar dispara, a Netflix ganha nos EUA; se o dólar despenca, ganha no Brasil, e assim moeda a moeda em diferentes regiões.

Uma política econômica ruim no Brasil não é boa para a Netflix, mas ela tem outra centena de países para compensar. No caso da Globo, uma política ruim local afeta decisivamente todos os seus resultados.

Determinismo cultural

É a crença de que a cultura em que somos criados determina quem somos nos níveis emocional e comportamental. E isso acontece com pessoas e empresas também. A história da Globo e sua trajetória são tão icônicas que tentar mudá-las é um exercício quase impossível.

De todo modo, cabe a pergunta: não seria possível a Globo criar uma marca global e, a exemplo de outras multinacionais na América do Sul, se tornar uma potência no desenvolvimento de tecnologia a partir da América Latina?

Em tecnologia, há exemplos como Globant e Mercado Livre, na Argentina, e TOTVS e Stefanini, no Brasil. Todos são casos de latinos concorrendo globalmente. Mas busque exemplos de grupos de mídia, e o número de empresas cai drasticamente. E não apenas no Brasil, comparativamente existem poucas empresas de conteúdo reconhecidas globalmente, e as predominantes são as americanas, ajudadas pelo histórico de Hollywood.

De algum modo, hoje todas as empresas precisam ser empresas de tecnologia em certo grau, porém a Globo ainda é uma empresa de conteúdo, não de tecnologia. Um pista é olhar onde está o maior número de registros de patente da Globo, se em conteúdo ou tecnologia. Empresas de tecnologia registram patentes de tecnologia.

Curiosamente, a Globo foi pioneira no processo de internacionalização já nos anos 1970, ao vender novelas para o exterior. E entre os anos de 1981 e 1993, a Globo comprou a TV Montecarlo (Itália/Mônaco) e a SIC (Portugal). Em 1994, diante dos resultados ruins, e melhores perspectivas no Brasil, a emissora carioca vendeu os negócios no exterior e focou na exportação de conteúdo.

Isso não foi sem dores, em Portugal a Globopar chegou a suspender o pagamento de sua dívida na época. E experiências como a da Globo na Europa ajudaram a moldar a cultura da empresa. Nos anos 1990, a globalização estava na moda e ser uma multinacional era a meta de 11 de 10 CEOs.

Agora, a moda é ter o próprio streaming. A diferença é que nos anos 1990 a Globo não tinha sua posição ameaçada no Brasil e seu domínio era inquestionável. Atualmente, com a digitalização do consumo de TV, o risco nunca foi tão alto e a margem para erros é pequena.

reprodução/globoplay

Canais de TV a cabo estão no streaming

Unbundling 

Unbundling (ou desempacotamento) significa vender separados produtos que antes eram vendidos juntos. O lançamento dos sites de notícia na internet promoveu o unbundling do jornal tradicional, com as notícias podendo ser consumidas separadamente online. O iTunes permitiu o unbundling dos CDs, já que as pessoas passaram a comprar faixas de música e não o CD completo do artista.

O que o Globoplay e outros serviços de streaming estão fazendo é pegar o "pacote de cabo", que vinha em uma assinatura mensal, e transformar em diversos canais de streaming. Ou seja, o streaming está "unbundling" a TV a cabo.

E historicamente está comprovado que esse movimento reduz a margem do produto. Jornais impressos passaram a ganhar menos dinheiro com notícias, e o mesmo se passou pela indústria musical. Agora, é a vez da TV.

Sobre este tópico, a uma das melhores análises já feitas foi publicada por Doug Shapiro, que já foi chief strategy officer da Turner Broadcasting System e senior vice president da Time Warner:

"O streaming gera apenas um sexto da receita de streaming por casa do que a TV paga gera por casa de TV paga, por duas razões: em média, as casas de streaming só assinam cerca de dois serviços; e metade de todo o tempo de streaming é livre de anúncios. Mesmo sob suposições otimistas sobre o aumento das taxas de assinatura de streaming e monetização de anúncios, é difícil ver como o streaming chegará perto."

Shapiro acrescenta ainda que "o streaming monetiza a uma taxa mais baixa por hora de consumo". E uma das grandes vantagens do digital, eliminar custos operacionais, não acontece no caso da TV.

Por exemplo, quando um banco fecha uma agência e os clientes seguem com o banco por meio digital, há economia de alguel, funcionário, seguranças etc. Quando a TV vai para o digital, sua economia é mínima, já que a estrutura de transmissão é relativamente barata.

No caso da TV aberta e a cabo, há pouca ou nenhuma vantagem econômica em eliminar o intermediário. E mais, ao adotar o modelo do streaming, ficará mais fácil para os consumidores assinarem outro fornecedor, o que causará pressão pelo aumento dos investimentos para reter e atrair novos assinantes.

Separar um produto para vendê-lo em partes encarece o custo de transação. Ao invés de receber o dinheiro dos provedores de TV a cabo em um polpudo depósito, a Globo terá de trabalhar com milhares de empresas de pagamento, cartões de crédito e bancos para se certificar de que cada usuário pagará sua assinatura todo mês. Adicionalmente, o número de fraudes e inadimplência também aumenta. 

E aqui, voltando ao ponto do determinismo cultural que apontei anteriormente, seja a mudança na dinâmica competitiva. A Netflix não está apenas disposta a operar com margens muito menores, mas outros "novos" entrantes com grandes bolsos estão dispostos a operar sem margem alguma. Já a Globo tenta seguir dando lucro.

A TV parecia resiliente à avassaladora onda digital porque os cortes de custos operacionais e as táticas mais agressivas para conseguir o dinheiro dos anunciantes deram mais tempo à Globo e aos seus concorrentes. Mas são artifícios que vão funcionar cada vez menos.

Como as indústria da música, jornal e revistas mostram, "de-crescer" é o caminho. Certamente, nenhum CEO quer ser dono de uma empresa "menor". Mas a exemplo de alguns editores de jornais e revistas pelo mundo, a Globo talvez descubra que atuar dentro de um nicho e de maneira eficiente e rentável talvez seja mais eficiente.

Tornar-se uma produtora global de conteúdo, sem ambições de concorrer com os grandes players, mas trabalhando para eles, não é demérito. Pode machucar o orgulho de quem sempre se viu como líder indiscutível em um país do tamanho do Brasil, mas paga as contas.

Alguns publishers perderam anos tentando concorrer com Google e Facebook. Depois de muita resistência, passaram a trabalhar juntos e melhoram a experiência dos usuários e criaram valor para o negócio.


Nota da Redação: Este texto é o primeiro de uma série de três sobre o mesmo tema.


Este artigo não representa necessariamente a opinião do Notícias da TV.


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