COLUNA DE MÍDIA
Reprodução/Apple TV+
Iluminadas: série com Wagner Moura é exemplo de investida da Apple no mercado de mídia
Há 18 meses, a Apple causou um terremoto nos mercados de publicidade e tecnologia ao implementar regras mais rígidas de privacidade para seus mais de 1 bilhão de usuários. Na prática, donos de iPhone, iPad e Mac só veriam anúncios segmentados se expressamente autorizassem.
Entre os usuários de iPhone e iPad dos EUA, apenas 37% optaram por permitir que as empresas os rastreiem em seus dispositivos, segundo a empresa de pesquisa Insider Intelligence. A baixa adesão foi uma bomba no ambiente digital.
A segmentação de publicidade é uma ferramenta poderosa. Ela permite aos anunciantes saber que tipo de anúncio um usuários está mais propenso a clicar. Por exemplo, se você visita o site de um fabricante de carros, as plataformas digitais podem segmentar os anúncios mostrados para que apareçam mais propagandas de carro no seu dispositivo.
O mercado de anúncios online é uma indústria de US$ 400 bilhões no mundo. O que dá uma ideia de sua eficácia e crescente importância. Quando a Apple implementou as regras, muitos aprovaram e parabenizaram a empresa. Afinal, quem iria achar ruim ter mais privacidade?
Mas à medida que os planos da Apple ficam mais claros, começa a ficar mais evidente que a mudança foi um golpe de mestre e um ataque certeiro aos concorrentes.
O jornal Financial Times revelou na última segunda (5) que a Apple já faz planos para dobrar o tamanho da sua área de publicidade nos próximos meses. Até alguns anos atrás, os esforços da Apple em torno da publicidade não tinham sido muito bem-sucedidos.
Lideranças como Steve Jobs, fundador da empresa, e Tim Cook, atual CEO, inclusive chegaram a dizer que a Apple não via a publicidade como prioridade. Mas isso está mudando rapidamente.
Segundo levantamento do FT, atualmente a fabricante do iPhone tem cerca de 250 pessoas em sua equipe da plataformas de anúncios. E de acordo com o site de carreiras da Apple, ela pretende preencher outros 216 cargos, quase quadruplicando os 56 funcionários que estava contratando no final de 2020.
As 216 vagas que a Apple procura preencher incluem designers e gerentes de produtos, engenheiros de dados e especialistas em vendas. A Apple contestou os números, mas se recusou a dar mais detalhes para a reportagem.
Desde a mudança das regras de privacidade impostas pela Apple, o negócio de anúncios da dona do iPhone passou de apenas algumas centenas de milhões de dólares de receita no final de 2010 para cerca de US$ 5 bilhões este ano, segundo a empresa de pesquisa Evercore ISI. Ainda segundo a reportagem, a projeção é de que a Apple fature US$ 30 bilhões com anúncios em quatro anos.
O Google faturou US$ 209 bilhões em 2021, o Facebook, US$ 115 bilhões. Em comparação, o negócio de anúncios da Apple ainda é pequeno. Mas isso deve mudar rapidamente. Existe ainda o problema de que esse crescimento talvez aconteça porque a Apple é capaz de estabelecer regras que criam uma vantagem injusta para seu próprio negócio.
As medidas de privacidade da Apple não colocaram em risco somente os gigantes de publicidade. Pequenas empresas, desenvolvedores de jogos e sites de notícias são altamente dependentes das tecnologias de segmentação para aumentar a eficiência de suas campanhas.
Quem desenvolve jogos para aparelhos de celular ou aplicativos ficou ainda mais dependente da Apple, que pratica taxas elevadas de divisão de receitas das vendas feitas dentro da Apple Store, chegando a 30% dos valores negociados na sua loja de apps.
À medida que o conteúdo das TVs migra rapidamente para as plataformas digitais e os streaming adotam rapidamente a publicidade, a Apple também se torna uma preocupação para os grupos de mídia. Além de ser dona da Apple TV e produzir conteúdo, ela também ganhas das empresas que disponibilizam seus apps na Apple Store.
Então, se um canal de TV lança uma plataforma de streaming e coloca seu app na plataforma da Apple, tem de dividir até 30% da receita de assinatura. Com o crescente domínio da Apple no mercado de publicidade, essas empresas também correm o risco de terem de aceitar a Apple como uma plataforma de publicidade.
"A Apple foi brilhante ao lançar essa estratégia com o discurso da privacidade. Conseguiu se posicionar muito bem. Além disso, tem um caixa tão grande que dificilmente alguém consegue competir com ela", diz um executivo de TV. "Mas sem dúvida é uma competidora formidável. Se é uma ameaça para o Google e Facebook, imagine para as empresas de mídia."
Para driblar a Apple, a Netflix não vende assinaturas dentro da Apple Store. Para contratar um plano é preciso ir até o site da Netflix. Mas quando lançar publicidade nos próximos meses, a plataforma de streaming irá se tornar uma concorrente da Apple no mercado de publicidade.
Você pode imaginar que uma briga de gigantes de tecnologia talvez não tenha nada a ver com seu dia a dia. Mas o desfecho dessa disputa pode determinar muito mais do que apenas você será impactado pela publicidade.
Não faz muito tempo que Apple e Facebook eram parceiros bem próximos. Tudo mudou no ano passado, quando a Apple lançou o iOS 14.5, aumentando o controle de privacidade. Isso impediu que aplicativos como o Facebook rastreassem as atividades em dispositivos da Apple. O resultado foi uma guerra entre as empresas, inclusive com o Facebook veiculando uma campanha publicitária atacando as medidas da Apple em diversos países.
O argumento do Facebook é que a medida beneficia a Apple e encarece a publicidade para os anunciantes, principalmente pequenas e médias empresas (o que de fato aconteceu). Outra consequência foi uma queda de lucro do Facebook e diversas empresas do setor.
Mas um fato revelado somente na semana passada, por uma reportagem do WSJ, é que antes de declarar guerra ao Facebook, a Apple tentou negociar um acordo com a empresa de Mark Zuckerberg.
"Nos anos anteriores à mudança, a Apple sugeriu uma série de arranjos possíveis que renderiam à fabricante do iPhone uma fatia da receita do Facebook, de acordo com pessoas que participaram das reuniões ou foram informadas sobre elas. Como uma pessoa lembrou: os funcionários da Apple disseram que queriam 'construir negócios juntos'", escreveu o jornalista Salvador Rodriguez no WSJ.
Uma ideia discutida era criar uma versão do Facebook baseada em assinatura e sem anúncios. Como a Apple recebe um percentual toda vez que uma assinatura é paga em sua loja, isso teria gerado uma receita considerável para a fabricante do iPhone.
A Apple queria receber inclusive por posts impulsionados dentro do Facebook. Os posts impulsionados são aqueles em que os donos do perfil pagam para alcançar mais pessoas. O Facebook argumentou que isso era uma forma de publicidade, e que os principais usuários eram pequenos negócios, rechaçando a iniciativa da Apple de receber parte desse dinheiro do Facebook. Os termos padrão da Apple dariam direito a uma participação de 30% dessas vendas.
A mudança de privacidade resultou em US$ 17,8 bilhões em receita perdida entre Facebook, Twitter, Snap e YouTube até este momento, de acordo com uma estimativa da Lotame, empresa de gerenciamento de dados.
Entre os anunciantes de celular dos EUA e do Reino Unido, 59% mudaram os orçamentos de publicidade do iOS para o Android, o sistema operacional móvel do Google, de acordo com uma pesquisa de junho da Tenjin e da Growth FullStack, que desenvolvem ferramentas usadas por anunciantes móveis.
Apesar de ter recebido mais receita no Android, o Google viu suas receitas em dispositivos iPhone e no YouTube caírem. No último trimestre, a empresa informou que suas receitas haviam desacelerado, com um resultado especialmente decepcionante no YouTube. No mesmo período, a receita de publicidade do YouTube apresentou uma taxa de crescimento de apenas 5% ano a ano, um recorde negativo para a plataforma. O número ficou bem abaixo das projeções dos analistas.
O maior problema para o Google, Facebook e empresas do setor e anunciantes, é que as restrições da Apple também diminuíram a eficiência da otimização de campanhas. O cálculo de otimização muda na nova configuração de privacidade, em que muitas combinações de formatos criativos de anúncios e parâmetros de segmentação não podem ser conectadas às conversões (as restrições da Apple dificultam saber quais formatos específicos de anúncio contribuem mais para uma venda).
À medida que fica mais difícil determinar qual anúncio gerou cada conversão, a eficiência despenca. Uma das grandes vantagens de Google e Facebook era a capacidade de otimizar as campanhas, já que estavam anos na dianteira. A Apple deu um golpe de mestre ao impor novas regras para o jogo usando a privacidade como argumento, porque abriu um espaço para si mesma no mercado, atrasando os concorrentes que estão tendo de rever toda sua tecnologia.
Talvez você imagine que assim fique mais fácil para sites ou empresas menores competirem com Apple, Facebook e Google. Mas na verdade o efeito pode ser o oposto, colocando essas empresas em posições ainda mais seguras e com larga vantagem para a Apple no caso dos usuários de iPhone.
Veja o caso da otimização dos anúncios. Existem dois conjuntos de dados — engajamentos de anúncios no site e conversões fora do site. Eles permanecem desconexos, mas podem ser comparados de forma agregada para informar os gastos da campanha usando modelagem probabilística. Uma plataforma de anúncios pode otimizar a entrega de criativos, por exemplo, para minimizar o custo por clique enquanto modela os resultados do anunciante usando conversões anônimas ou no nível da campanha.
A Meta sofreu um forte impacto de performance logo após a mudança da Apple. Mas há alguns meses, revelou que reduziu a subcontagem de conversões no sistema operacional da Apple em cerca de metade --de 15% das conversões perdidas para 8%. Ou seja, a Meta tem aumentado drasticamente sua eficiência usando inteligência artificial com aprendizado de máquina para "juntar" esses dois bancos de dados. O Google também evolui rapidamente neste sentido.
A automação das campanhas e maior uso de complexos modelos de inteligência artificial são o futuro do setor. Mas há outra vantagem para as gigantes de tecnologia que usam automação, porque "ela incentiva os anunciantes a concentrar o orçamento em menos plataformas de anúncios, mas especialmente aquelas que estão preenchendo o inventário próprio e operado", aponta Eric Benjamin Seufert no blog Mobile Dev Demo.
No atual cenário, um anunciante irá procurar minimizar o número de canais em seu portfólio de tráfego se alguns deles --principalmente os maiores-- estivessem modelando o desempenho usando sinais de conversão anônimos que não podem ser atribuídos diretamente.
"Quanto mais orçamento alocado por canal, mais sinal genuíno cada canal recebe para modelar (também: existem apenas tantas conversões orgânicas que podem ser injustamente reivindicadas por modelos de conversão excessivamente zelosos). Se as maiores plataformas estão usando automação de ponta a ponta para impulsionar a reatividade imediata da campanha com base em conversões modeladas, é natural que um anunciante aloque uma parcela desproporcional do orçamento para esses canais", diz Seufert.
Se você for um canal pequeno no digital, sua vida ficará ainda mais difícil. Esse usualmente é o caso de veículos de imprensa no digital. Também dificulta a vida de TVs e plataformas de streaming que tentam vender anúncios online. Além disso, como o diferencial cada vez mais passa a ser o volume de dados coletados, quem já é grande tende a ficar maior. Isso torna cada vez mais difícil a entrada de novos concorrentes no mercado.
Existe ainda o risco de a Apple mudar as regras novamente e ser beneficiada por suas próprias decisões. Seja como for, perdemos diversidade no mercado.
"Poderíamos ganhar muito dinheiro se monetizássemos nossos clientes --se nossos clientes fossem nosso produto", disse o executivo-chefe Tim Cook em 2018. "Nós optamos por não fazer isso."
A Apple nunca foi contra a publicidade em si. O fundador da empresa, Steve Jobs, até tentou lançar um negócio de anúncios no aplicativo em 2010 para que os aplicativos para iPhone pudessem permanecer gratuitos. O que Cook é contra é como as informações pessoais são compradas e vendidas por terceiros sem transparência e sem o consentimento dos usuários do iPhone, lembra Patrick McGee no FT.
"Ainda assim, a Apple definir as regras de como os anúncios devem funcionar e, em seguida, expandir para essa mesma área, parece problemático para muitos observadores", conclui McGee.
A venda de eletrônicos da Apple caiu 1% no último trimestre em relação ao ano anterior. Mesmo assim, gerou US$ 63,4 bilhões em três meses. Enquanto isso, a receita de serviços da empresa --que inclui a App Store, as ofertas de armazenamento em nuvem da empresa e sua própria operação de publicidade-- subiu 12% em relação ao mesmo período do ano passado, alcançando US$ 19,6 bilhões.
Como os números mostram, a publicidade é um negócio cada vez mais rentável para a Apple. Resta saber se vão se manter fiéis ao discurso de que seus usuários não são um produto.
PS.: Por razões de transparência, vale dizer que já participei de projetos do Google e Facebook de apoio ao jornalismo.
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