ANÁLISE
DIVULGAÇÃO/CLÁUDIA MARTINI
O ator Eduardo Martini impressiona como Clodovil Hernandes na peça Simplesmente Clô
Clodovil ressuscitou e está de volta. Não se trata de um milagre da vida real, mas daqueles feitos pela magia do teatro. Na pele do talentoso ator Eduardo Martini, o polêmico personagem da moda e da televisão domina a peça Simplesmente Clô, aos sábados, 21h, e domingos, 19h, no Teatro União Cultural, em São Paulo.
Do tipo "ame-o ou deixe-o", Clodovil Hernandes (1937-2009) cravou sua inconfundível marca não só na TV, como na sociedade brasileira. Dono de opiniões fortes, era do tipo que não podia ser ignorado. Até porque ele próprio não permitia jamais que isso acontecesse.
Ao mesmo tempo em que era declaradamente gay em um tempo no qual esse tema era tabu, também esbravejava em seu programa opiniões conservadoras, fazendo dessa incoerência um atrativo a mais para o público, sempre ávido por polêmicas.
Clodovil foi um gay que, para ser aceito por uma elite conservadora que comprava seus famosos vestidos, repetia ele mesmo os preconceitos dessa classe contra a própria condição de homossexual, fazendo suas palavras serem aplaudidas por um tipo de pessoa que o condenaria caso ele não fosse famoso, rico e poderoso.
Contudo, nem por isso Clodovil era salvo de ser estereotipado e até mesmo ridicularizado diante do público. É possível ver até hoje nos arquivos do YouTube seu desconforto ao ser vítima de piada homofóbica de Sérgio Mallandro no Programa Silvio Santos.
Ou a perseguição atroz que o programa Pânico fez com ele no quadro Sandálias da Humildade, ridicularizando sua imagem junto ao público jovem que acompanhava o humorístico.
Entretanto, Clodovil também adorava humilhar as pessoas na TV, fazendo perguntas desconcertantes que expunham propositadamente a ignorância de seus entrevistados. Os famosos tinham pavor de ir ao seu programa. Só iam porque ele tinha ibope cativo.
Talvez estar sempre em posição de ataque fosse uma maneira de Clodovil se defender de um mundo que costumava ser cruel com um gay de sucesso. Ele sabia que incomodava muita gente. E gostava disso.
É preciso ressaltar que o comportamento de Clodovil precisa ser visto dentro do tempo em que viveu. Boa parte da atual comunidade LGBTQ+ adora condená-lo ao fogo do inferno eterno, mas se esquece de que boa parte da carreira do estilista-apresentador foi construída durante o conservadorismo da Ditadura Militar (1964-1985).
Quando veio a Nova República, esse conservadorismo já estava tão arraigado dentro dele que não o permitiu avançar o pensamento com os novos tempos.
Carisma nunca faltou a Clodovil. Tanto que, quando resolveu candidatar-se a deputado federal, foi o terceiro mais votado de São Paulo, com 493 mil votos, atrás apenas de Paulo Maluf e Celso Russomano no pleito de 2006.
Ele só não sabia que trocar o mundo do entretenimento pelo da política também significaria seu fim. Clodovil morreu em Brasília, e até hoje sua morte é envolta em mistério e especulações de que teria sido assassinado, como cravou sua ex-cozinheira Renata Cândido Rodrigues a Geraldo Luís, no Balanço Geral da Record em 2019.
Mas voltemos ao teatro. A peça Simplesmente Clô, escrita por Bruno Cavalcanti e dirigida por Viviane Alfano em parceria com o próprio Eduardo Martini, busca justamente, como diz seu título, esquadrinhar o homem Clodovil e seus pensamentos sobre sua trajetória de vida, repleta de altos e baixos e de muitos desafetos.
Mais do que a polêmica que sempre dominou as manchetes sobre Clodovil, desde os tempos em que rivalizava com o estilista Dener Pamplona (1937-1978) e depois com as colegas de TV Mulher (1980-1986) na Globo, Marta Suplicy e Marília Gabriela, o que interessa na peça é o homem por trás da fama. Este é o grande mérito do espetáculo: fugir do óbvio sobre Clodovil.
Eduardo Martini assombra o público com uma caracterização impressionante. Na pele do estilista, demonstra ser um dos atores mais intuitivos de sua geração. De tão verossímil, assombra o modo como fala e gesticula o artista, em uma metralhadora de frases nas quais sobram palavras. Afinal, Clodovil sempre tinha muito a dizer sobre tudo. As suas famosas "verdades".
Como Clodovil, Eduardo Martini celebra em grande estilo seus 60 anos de vida, resistindo corajosamente no teatro em tempos de pandemia. Seu trabalho é digno de ser premiado. No palco, conta com a cumplicidade não só do público que lhe é fiel como também do público saudoso em rever Clodovil, cuja morte fará 12 anos em 17 de março próximo.
Na sessão vista por este crítico, havia até mesmo uma caravana de senhorinhas que viajaram, mascaradas, de Santos a São Paulo apenas para assistir ao espetáculo. Ao fim, aplaudiram de pé, emocionadas por reencontrar no palco um velho conhecido da TV.
É bom salientar que a montagem segue todos os protocolos sanitários previstos pelo Plano São Paulo em virtude da pandemia de Covid-19, respeitando o distanciamento do público na sala teatral com capacidade reduzida, uso obrigatório de máscara por todos e muito álcool em gel no hall do charmoso Teatro União Cultural.
Em tempo: no mesmo teatro, às sextas, às 21h, o incansável Eduardo Martini pode ser visto também como outra personagem famosa da TV, a divertida Neide Boa Sorte, mulher rica e sem papas na língua que durante anos foi seu quadro de humor no programa de Hebe Camargo no SBT.
Dito tudo isso, este crítico indica: chame aquela pessoa que não suporta mais estar confinada, ponham suas máscaras, lambuzem as mãos com álcool em gel e corram para o teatro para conferir o trabalho deste grande ator do teatro brasileiro chamado Eduardo Martini.
De onde estiver, Clodovil deve estar feliz por ser lembrado neste país sem memória. Afinal, o que ele adorava mesmo era estar na boca do povo.
Simplesmente Clô
Avaliação: ótimo
Quando: sábado, 21h, domingo, 19h. 60 min. 12 anos.
Onde: Teatro União Cultural (rua Mário Amaral, 209, Paraíso, Metrô Brigadeiro, São Paulo, SP. Tel. 11 3885-2242).
Quanto: R$ 35 e R$ 70 na Sympla
Este texto é argumentativo e não expressa necessariamente a opinião do Notícias da TV.
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MIGUEL ARCANJO PRADO é jornalista pela UFMG, pós-graduado em Mídia, Informação e Cultura pela ECA-USP e mestre em Artes pela Unesp. É crítico da APCA, criador do Prêmio Arcanjo de Cultura e coordena a Extensão Cultural da SP Escola de Teatro. Passou por Globo, Abril, Folha, Record, Band e UOL. Clique para ver mais textos do Miguel e conheça também o Blog do Arcanjo
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