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NICETTE BRUNO

Beth Goulart encara dor, luto, revolta e encontra paz em livro sobre a mãe

NANA MORAES/DIVULGAÇÃO

Beth Goulart srueg abraçada à mãe, Nicette Bruno, e ambas sorriem para foto

Beth Goulart escreveu um livro para homenagear a mãe, Nicette Bruno, vítima da Covid-19

Clarice Lispector (1920-1977) era firme ao afirmar que "amar não acaba". Para conviver com a dor de perder a mãe, Nicette Bruno (1933-2020), Beth Goulart se apegou a esse ensinamento. Esse amor profundo guiou a atriz no processo de escrita de Viver É uma Arte: Transformando a Dor em Palavras, livro que ela agora lança em homenagem à matriarca. A artista descreve uma jornada em que reviveu o luto, a revolta, mas que encontrou um desfecho de paz e de cura, uma experiência que ela deseja compartilhar com os leitores.

 "O livro me ajudou em vários momentos. Claro que eu não consegui imediatamente ir escrever. Eu tive que parar, ter um tempo de luto, mas depois ele me ajudou a elaborar todos esses sentimentos. É muito forte perder mãe. Perder pai é muito difícil, mas perder mãe... O sentimento de orfandade é muito grande", destaca a artista em entrevista ao Notícias da TV.

Originalmente, a ideia do projeto seria Beth e Nicette escreverem juntas, para resgatar ainda a memória de Paulo Goulart (1933-2014). Com a partida da mãe, a atriz seguiu com o plano de homenagear o pai, mas também remodelou o trabalho para honrar a veterana. De certa forma, ela sente que compartilhou os dois com o público ao longo de sua vida, algo replicado na nova obra.

"Eu dividi minha mãe. A minha mãe era mãe de todo mundo. Minha mãe e meu pai. Sempre tinha alguém que falava assim: 'Seu pai parece tanto o meu pai. Seu pai parece tanto o meu tio'. Com a minha mãe também: 'Nossa, a mãe da minha mãe é igual a sua mãe'. Então, tem essa proximidade. Aliás, nós, como família, acho que representávamos um pouquinho o símbolo de família. Não uma família de artistas, mas uma família. Pessoas normais", define.

reprodução/instagram

Beth Goulart ao lado dos pais

Beth Goulart ao lado dos pais, Paulo e Nicette

A perda de Nicette foi um grande susto para Beth, seus irmãos, Bárbara e Paulo, e toda a família. A intérprete não tinha problemas de saúde quando foi diagnosticada com Covid-19, o que a levou a ser entubada e morrer 21 dias depois. A situação causou comoção e também revolta, tendo em vista a falta de vacinas que ainda havia no país na época do ocorrido.

Beth precisou reviver tudo isso ao escrever, mas diz que, muito graças à sua espiritualidade, não se apegou aos sentimentos mais dolorosos. "Sempre que você vive um processo de luto, você passa por várias fases. Uma delas é a revolta. Pelo fato de sermos espiritualistas, a revolta em si não é muito parte da nossa vida. Porque a gente tem uma visão de vida de aceitamento de determinados processos pelos quais temos que passar para o nosso crescimento", relata.

Não é que você não sinta dor, não sinta raiva, não sinta a perda. Você sente e deixa passar. Tem pessoas que param nesse sentimento, que não se permitem sair dele. Escolhem ele como estado. Isso não é a nossa característica. Eu não escolheria jamais ficar nesse lugar. É humano você ter raiva, é humano você xingar, é humano você perder, bater. Mas eu não vou alimentar isso. Sou pacífica. Prefiro não ir e ficar nesse lugar.

Esse mesmo lado espiritual é o que traz para a artista a esperança de que hoje, em outro plano, os pais estejam bem, e que seu relato possa acalentar outros corações que tenham passado pelo mesmo que ela, seja durante a pandemia ou além.

"Isso que aconteceu comigo, na verdade, aconteceu com quantas pessoas? Quantas pessoas não viveram essa mesma dor que eu vivi? Eu estava até comentando com uma amiga: em 21 dias eu perdi a minha mãe. Ela falou assim: 'Eu, em uma semana'. A história de vida deles [meus pais] se confunde com a história do teatro, da televisão e do cinema brasileiro. Tiveram uma importância histórica muito grande. Nos passaram todo esse legado profissional, de vida, de dedicação. No fundo é um grande legado de amor", define.

Confira a entrevista exclusiva completa com Beth Goulart:

Notícias da TV - Como surgiu a ideia do livro e de onde você tirou forças para fazê-lo? Ao mesmo tempo que é um processo de muito carinho, também é doloroso revisitar momentos difíceis, não?

Beth Goulart - Sim, com certeza. Na verdade esse processo todo começou de uma outra maneira. Ele foi se transformando. Começou porque eu e minha mãe fazíamos algumas palestras juntas. Aconteceu isso logo depois do processo da perda do meu pai. Nós conseguimos superar muito a dor da perda dele trabalhando juntas, fazendo um espetáculo, que foi O Perdas e Ganhos. Um texto da Lya Luft [1938-2021] que eu adaptei para o teatro e dirigi minha mãe. Foi uma experiência muito forte e significativa para nós duas.

No final, nós, artistas, somos comunicadores. No fundo a gente quer é se comunicar com as pessoas, tocá-las. Fazê-las refletir sobre elas mesmas, sobre a realidade em volta, sobre a vida. Isso era a base das nossas palestras. Nós falávamos um pouquinho da nossa filosofia de vida. Aí surgiu um convite: 'Vocês não querem fazer um livro sobre esse material que vocês desenvolvem nas palestras?'.

Veio a Marcela Abud, que é a editora de conteúdo do trabalho. Ela falou: 'Seria bom começar em um momento importante que vocês duas viveram juntas'. Aí eu falei: 'A morte do meu pai. Nós vivemos uma coisa muito forte juntas. Seria bom começar daí'.

Então, com a morte da Nicette, o livro se transformou?

Ela seria minha companheira, e ela virou tema do livro. Nós começamos falando da morte do meu pai. Foi logo que ela pegou a Covid. Eu também tinha um paralelo muito forte da perda do meu pai à perda da minha mãe. A perda do meu pai foram quatro anos. Nós nos preparamos de certa forma para a partida dele. A dela foi um choque, não tinha como se preparar. Ela estava ótima. Partiu em 21 dias.

reprodução/tv globo

Paulo Goulart e Beth Goulart

Morte de Paulo Goulart foi ponto de partida de livro

A morte do meu pai foi uma comoção geral. Todas as pessoas puderam se despedir. Teve um velório lindo no Teatro Municipal, duas missas de sétimo dia. As pessoas puderam ir ao cemitério, nos abraçar, ter esse contato. A da mamãe? Ninguém pôde chegar perto. Ninguém pôde nem olhar. Não pudemos viver o ritual da morte, da perda, que é tão necessário.

O livro me ajudou em vários momentos. Claro que eu não consegui imediatamente ir escrever. Eu tive que parar, ter um tempo de luto. Mas depois ele também me ajudou a elaborar todos esses sentimentos. É muito forte perder mãe. Perder pai é muito difícil, mas perder mãe... O sentimento de orfandade é muito grande.

Ainda mais porque, como você disse, foi tudo tão de repente...

Sim... E isso que aconteceu comigo, na verdade, aconteceu com quantas pessoas? Quantas pessoas não viveram essa mesma dor que eu vivi? Eu estava até comentando com uma amiga: 'Em 21 dias eu perdi a minha mãe'. Ela falou assim: 'Eu, em uma semana'. O número de pessoas que viveram essa mesma dor, esse mesmo sentimento, é muito grande.

Então da mesma maneira que eu entendo que o teatro foi um canal de auxílio para muitas pessoas, eu acho que esse livro também pode ser. Acho que a minha dor, de alguma forma, trazer uma dor pessoal para uma dor coletiva, um canal positivo de transformar essa dor. Você tem que descobrir a sua força interna. Você tem que descobrir a sua autonomia, a sua autoestima, sua independência, sua maturidade.

Eu não tenho mais com quem dividir. Em que colo vou deitar? Tem que ser o meu próprio colo. Tenho que aprender a ser minha própria mãe. Meu próprio pai. Eles estão dentro de mim agora. E aí você ganha uma força. Você é jogado em um vazio e aí recomeça desse vazio. Você não perde nada do que você viveu. Não volta. É daqui para frente, um novo começo. Eu termino o livro assim, na verdade. Todo fim é um novo começo. 

E você também compartilhou seus pais com o público, não é? Eles foram um pouco pais e avós de todos. 

Sempre tinha alguém que falava assim: 'Seu pai parece tanto o meu pai. Seu pai parece tanto o meu tio'. Com a minha mãe também: 'Nossa, a mãe da minha mãe é igual a sua mãe'. Então, tem essa proximidade. Aliás acho que representávamos um pouquinho o símbolo de família. Não uma família de artistas, mas uma família. Pessoas normais. As pessoas se identificavam. Talvez por sermos simples, nunca tivemos essa coisa de ser artista

Quando a mamãe faleceu de Covid, muita gente teve a sensação de perder alguém da família. Ela fazia parte, sim, dessa memória emotiva de todas as pessoas. E também o casal era muito bonito. O símbolo de amor dos dois, que criaram uma família. No fundo todo mundo gostaria de ter isso.

Uma família amorosa, uma família de pessoas que fazem coisas que amam, mesmo que seja difícil. Muita gente tem uma visão meio glamourizada sobre ser artista, que não é nada disso. A gente sabe que a vida de ser ator no Brasil não é simples. Aprendemos desde cedo que no fundo somos operários da arte. Que a arte é um ofício de muita dedicação, de muito empenho, muita doação, muita entrega.

O posfácio que Fernanda Montenegro escreveu para o livro fala um pouco sobre isso...

Com certeza. E aprendi a valorizar cada vez mais tudo isso que a gente viveu e que eles nos deram. Bagagem de vida, de história, de formação. Eu tive um privilégio maravilhoso nesse livro de ter um prefácio Nélida Piñon e um posfácio da Fernanda Montenegro. Elas acompanharam também essa partida da mamãe de uma forma brusca através de mim. De certa maneira, isso que aconteceu com a mamãe nos aproximou muito.

Então esse livro tem muitos significados para mim. É um novo nascimento, é uma porta nova que se abre como autora. Isso para mim significa muito, eu que sempre fui apaixonada pelos livros, que sempre quis de alguma forma fazer uma ponte entre o teatro e a literatura. Estou tendo a chance de ganhar essa voz. 

É o primeiro livro que você escreve?

Livro, sim. Eu já escrevi. Fiz participações em livros, muita coisa ligada a Clarice [Lispector]. Clarice me abriu muito, descortinou o universo da literatura em vários sentidos. Mas eu gostei muito da brincadeira [risos]. Aquela brincadeira que a gente leva a sério.

No livro, você também destaca a ancestralidade feminina em sua família. Como foi revisitar esse passado e o que você descobriu?

Acho que as mulheres, de maneira geral, têm uma coisa muito linda de serem responsáveis por transmitir, através da oralidade, um pouco da nossa história. Sempre ouvi muito histórias da minha bisavó, da minha avó, eu era muito ligada à minha avó. Mas a presença da minha bisavó sempre foi muito forte, porque ela era uma personalidade forte. Era de certa forma um matriarcado. Herdei um pouco desse matriarcado na história da minha família e sempre valorizei muito a nossa história pessoal.

reprodução/instagram

Beth Goulart e Nicette Bruno

Beth resgatou não só a mãe, mas outras ancestrais

O meu segundo espetáculo solo, por exemplo, já foi em cima de uma história de minha avó. Eu resgatei a relação dela com Nelson Rodrigues [1912-1980], que foi a base desse trabalho. As mães cuidam, educam, alimentam, e a cultura está diretamente ligada a esse cotidiano da vida. 

Os homens também têm a sua história, mas eu falei das mulheres por ser mulher, então eu me identifico com isso e também através da maternidade. Vem de um processo muito forte da mulher de gerar, criar, educar, sustentar, encaminhar.

Sua mãe também deixou uma série de ensinamentos não é mesmo?

Com certeza. Mamãe era um ser de luz. Ela era um espírito iluminado, pela simplicidade, pela alegria de viver. Minha mãe era uma mulher muito alegre. Ela estava sempre sorrindo, animada. Feliz, sabe? Ela era um exemplo de felicidade.

Ela era intensa nesse sentido. Ela era aberta para a vida. Então, uma pessoa assim transmite isso, às vezes até pela sua presença. Não precisa nem falar nada. A sua presença é uma luz que chega ali e ilumina quem está em volta. Meu pai também era assim. Pessoas assim acabam atraindo quem precisa disso e acaba virando uma corrente do bem, de luz, uma corrente de afeto, de amor.

Quando sua mãe morreu, o país todo passava por um momento muito difícil com a pandemia. Além de tristeza, se falou muito em revolta, sobretudo pelo descaso com a saúde e a falta de vacinas. A revolta também fez parte do seu processo?

Sempre que você vive um processo de luto, você passa por várias fases. Uma delas é a revolta. Pelo fato de sermos espiritualistas, a revolta em si não é muito parte da nossa vida. Temos uma visão de vida de aceitamento de determinados processos pelos quais precisamos passar para o nosso crescimento, o que faz com que a gente diminua um pouco a revolta. A gente tem raiva. Na pandemia tivemos milhões de situações para ter essa raiva, não só pessoalmente, pelo que vivemos, mas coletivamente. Não dava para você ficar tranquilo diante dessa situação.

Não é que você não sinta dor, não sinta raiva, não sinta a perda. Não sinta as coisas. Você tem de tudo, mas você não para naquilo. Tem pessoas que param nesse sentimento, que não se permitem sair dele. Escolhem ele como estado. Isso não é a nossa característica. Eu não escolheria jamais ficar nesse lugar. É humano você ter raiva, é humano você xingar, é humano você perder, bater. Mas eu não vou alimentar isso. Sou pacífica. 

Não acho saudável, por exemplo, uma pessoa perder alguém e ficar constantemente, durante muito tempo, nesse estado. Acho doentio. A grande certeza da vida é que a gente vai morrer. A grande incerteza é quando. Então, isso faz parte da vida.

reprodução/Instagram

Nicette Bruno e Paulo Goulart

Nicette Bruno e Paulo Goulart foram casados por 60 anos

Falando em espiritualidade, como você acha que estão seus pai agora? Qual o legado que fica deles?

Eu espero que eles estejam muito bem. Vivendo na paz, usufruindo das benesses de todas as coisas positivas e boas que eles fizeram aqui na vida. E foram muitas coisas. Eram dois seres iluminados, generosos, amorosos, que só plantaram isso em torno de si. Ajudaram muita gente. Foram pessoas muito boas, que realizaram suas missões de vida de uma maneira extraordinária. Atores magistrais. A história de vida deles se confunde com a do teatro, da televisão e do cinema brasileiro.

Nos passaram todo esse legado profissional, de vida, de dedicação. Todo esse legado de amor. No fundo é um grande legado de amor. O amor distribuído de várias maneiras diferentes. Pela arte, por Deus, pela fé, pelo teatro, pela televisão, pelo próximo. Espero que eles estejam acompanhando as nossas trajetórias. E acompanhando de camarote, como dizia minha avó. Acho que eles estão em um camarote especial.

Qual Beth começou e qual Beth terminou esse livro?

[Foi] uma jornada de aprendizado, de crescimento, de fortalecimento. A Clarice tem uma frase muito linda, que eu gosto sempre de citar:  'Amar, amar não acaba'. Então é isso. A constatação dessa eternidade do sentimento que fiquei muito feliz de alguma forma ficar eternizado nesse livro.

É muito bom você poder falar para outras gerações, você poder contribuir com esse olhar e propor que as pessoas tenham esse olhar para si mesmas, com generosidade, com amorosidade, com alegria. Que seja uma trajetória para atingir o melhor de si mesmas. Acho que eu estou no caminho. Então eu fico feliz, esse livro é uma grande porta. Abriu-se um portal, agora eu vou entrar. 


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