GILBERTO BRAGA
REPRODUÇÃO/INSTAGRAM
Antonio Fagundes em foto publicada nas redes sociais; ele deu entrevista para livro sobre velhice
Antonio Fagundes passou boa parte da vida na TV. Fez protagonistas de diversos autores, virou uma figura marcante para o público e, durante quase todos os anos de sua vida adulta, esteve transitando por um corredor dos Estúdios Globo. Foi num desses momentos que ele encontrou Gilberto Braga (1945-2021), um dos novelistas mais célebres da Globo --que, aliás, está sendo homenageado nos últimos tempos; Escrava Isaura (1976) e Pátria Minha (1994), novelas dele, foram inclusas no catalogo do Globoplay recentemente, e Paraíso Tropical (2007) será exibida no Vale a Pena Ver de Novo.
Eles poderiam trocar ideias sobre inúmeros assuntos, inclusive as experiências quanto à idade --Braga era apenas quatro anos mais velho que Fagundes. Mas o novelista já tinha uma pergunta na ponta da língua, que o ator lembra até hoje --apesar das várias conversas aleatórias que trocou nas mesmas circunstâncias: "Você não pretende operar essas bolsões embaixo dos olhos?"
Ele lembra disso com detalhes pois não conseguiu entender a preocupação do autor com isso. Valmir Moratelli, autor do recém-lançado A Invenção da Velhice Masculina, destaca como o artista narrou o episódio: "O Antonio falou assim: 'Mas essas marcas contam quem eu sou, o que sou, da onde eu vim. São parte da minha história. Se eu tiro isso, tiro parte de mim", conta em entrevista ao Notícias da TV, destacando a dificuldade dos autores de lidar com o envelhecimento dos atores.
Mas o fato de o autor ter apontado que ele já tinha marcas de idade não lhe trouxe nenhuma surpresa. Fagundes já havia reparado que não era mais o mesmo pouco tempo antes, durante uma gravação com Stênio Garcia. Os dois estavam recriando uma cena de Carga Pesada (1979-1981; 2003-2007) que fora gravada 20 anos antes:
Era uma sequência de corrida. Eles tinham de correr por um posto de gasolina e subir às pressas num caminhão. Depois, dirigiam em alta velocidade. No meio da gravação, ele virou para o Stênio e disse: 'Nossa, o caminhão está mais alto, né? Antes, parecia tão mais fácil'. Aí o Stênio olhou para ele e falou assim: 'Não é o caminhão que está mais alto, nós que estamos vinte anos mais velhos'.
Mas ele não ficou assustado, ou teve crises por conta disso. Fagundes sempre viu a velhice com uma espécie de nostalgia. Ele interpretou um idoso em seu primeiro trabalho no teatro. À época, fez maquiagem para simular rugas, treinou uma voz rouca e andou curvado. Pensar em envelhecer sempre lhe levava para aquela lembrança, marcada pela adrenalina da estreia de uma carreira que lhe levou ao estrelato.
Nem sempre é assim. Não à toa, existem inúmeros estudos sobre as crises de meia-idade e de terceira idade. Em seu livro, inclusive, Moratelli destaca o quanto os homens se deixam afetar pelo envelhecimento. Eles estão acostumados a estar no centro do poder e das decisões, e o fato de o envelhecimento fazer com que a sociedade os relegue a uma posição de passividade traz uma série de consequências.
"Desde a infância, o homem pode tudo. Ele deve se colocar na frente de tudo, ele comanda as ações. É por isso que ele não tem o autocuidado, não vai ao médico, não se preocupa com laços familiares. É um choque psicológico quando, de repente, ele se aposenta e vai para o âmbito familiar. Ele se sente perdido na esfera doméstica", diz.
Outras variáveis também podem impactar essa experiência, como o fato de Fagundes ser um homem branco. Mesmo mais velho, ele sempre conquistou papéis de destaque na TV. "Ele sempre está no núcleo central. Ele pode não ser mais o mocinho, mas é o pai do mocinho, ou é o vilão, ou é alguém que vai articular as maldades da trama", analisa Moratelli.
Aliás, a imagem do homem branco com cerca de 60 anos é frequentemente usada na teledramaturgia como um símbolo de poder. "O Fagundes, por exemplo... Desde o momento em que ele começa a fazer personagens idosos... Ele é o empresário, ou o arquiteto, ou um médico. Ele exerce profissões que são ditas 'nobres' na sociedade. Em Amor à Vida [2013], ele fazia um empresário, um dono de hospital que rejeitava o filho gay [Félix, interpretado por Mateus Solano, o protagonista do folhetim]."
Em outros perfis, a experiência é bem diferente. Antônio Pitanga, por exemplo, raramente é visto na TV agora, apesar de ter uma carreira consolidada na atuação. Ele até esteve em Amor Perfeito (2023), mas seu personagem é o completo oposto dos que Fagundes vem interpretando nos últimos anos. O Dom Vitório não era um papel indispensável para a história, e seus atos pouco refletiam na trama principal.
"Uma das diferenças do ator idoso branco e do ator idoso negro é o fato de o negro ser representado totalmente fora de um núcleo familiar. Ou ele pode sequer ter uma profissão. Ele também mal tem função para a trama; está num cargo muito secundário, apático, solto na narrativa. Não tem casa, não tem cenário, não tem netos, para poder exercer toda a questão do sentimento de pertencimento, de união, que o homem branco vai ter", reitera Moratelli.
joão miguel júnior/tv globo
Pitanga como dom Vitório em Amor Perfeito
A gente viu isso em Amor Perfeito. Ótimo que tem um núcleo de idosos, ótimo que traga atores que estavam muito tempo afastados da TV para exercer a profissão, mas também é preciso um pouco mais. É preciso dar uma narrativa para essas pessoas na história, fazê-las questionar a própria vida, pensarem além. É preciso pensar o que o faz tão primordial ali.
A questão perpassa a discussão da representatividade, algo muito maior do que simplesmente ter um núcleo de atores idosos. Para o jornalista, as tramas deveriam se aprofundar em questões pertinentes às pessoas mais velhas, além de colocá-las em posição de protagonismo e importância. Escalá-las como um "enfeite" só reafirmaria um outro estereótipo: o de que elas são incapazes.
Pitanga sentiu isso na pele. Também entrevistado para o livro de Moratelli, o ator teve de fazer malabarismos para provar que ainda era capaz de exercer sua profissão. Para o jornalista, ele contou que passou um dia inteiro com um diretor, passeando e conversando, apenas para provar que não tinha perdido suas capacidades mentais --e que seria plenamente apto de viver Cristóvão, o protagonista de Casa de Antiguidades (2020).
"Para mudar isso, é preciso entender os idosos na sua complexidade --inclusive nas produções audiovisuais. Um exemplo é falar da questão da sexualidade do idoso. O idoso também dá beijo na boca, também transa, né? Também é legal colocá-lo inserido no mercado de trabalho, já que a gente está tratando de uma população que envelhece mais tarde... Enfim, é importante tratar de questões específicas desse público", conclui o jornalista.
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