GÊNERO EM ALTA
REPRODUÇÃO/GLOBO
A reestreia de Linha Direta na Globo acendeu novos debates sobre o consumo do gênero true crime
O true crime, gênero que investiga crimes reais e o representa por meios literários ou audiovisuais, tem se expandido nos últimos anos. Apesar de uma maior presença em formatos online, como podcasts, o interesse da audiência brasileira por discussões criminais no campo midiático não é inédito. A reestreia do programa Linha Direta, na Globo, acendeu holofotes para o gênero e trouxe consigo novos debates sobre os limites que devem ser impostos a essas produções.
O primeiro episódio do programa chamou a atenção do público ao abordar o caso Eloá, no qual uma jovem de 15 anos foi sequestrada e assassinada pelo ex-namorado em 2008. Pedro Bial, apresentador da nova temporada da atração, incentivou uma discussão sobre o feminicídio e a interferência problemática de veículos de comunicação na cobertura do crime.
Como ponto positivo, o gênero promove novas reflexões sobre temas sociais importantes. A abordagem sobre a violência contra a mulher, por exemplo, se une à natural sede de curiosidade do telespectador e permite que o assunto seja conversado.
"Para algumas pessoas, o programa pode ter uma função de responder a curiosidade, saber o que se passa na mente de uma pessoa que age de determinada forma. Para outras pode servir como forma de sentir-se mais preparada para 'o que pode acontecer'", explica Ronaldo Coelho, psicólogo, psicanalista e professor de psicanálise em São Paulo, em conversa com o Notícias da TV.
"Outros podem estar elaborando, de forma mais ou menos inconsciente, emoções difíceis que por ventura estejam presentes", continua. O professor argumenta que o true crime pode nutrir um sentimento de justiça ou vingança entre os telespectadores. Afinal, o gênero permite que a audiência se coloque na posição de quem decide pela culpa ou absolvição das condenações.
Contudo, entre as emoções geradas pelas produções, Coelho não descarta o estímulo de sentimentos de violência. "É necessário que os produtores dos programas fiquem atentos para não serem fomentadores dos crimes que supostamente estariam querendo combater", diz.
"Se isso acontecer, os programas estarão incentivando a criminalidade --por parte dos que podem se identificar com o criminoso e desejar obter os mesmos holofotes que ele-- e também o medo da população", justifica.
Vale lembrar que a espetacularização da violência é sempre assunto delicado, independentemente de como ocorra, pois sempre será oportunidade de especulação sobre questões individuais, sem tratar dos problemas sociais que constituem fenômenos complexos. Por exemplo, com o feminicídio e a violência familiar, o programa pode deixar a desejar em cumprir com a intenção, mesmo que ela exista de forma declarada, de contribuir para a conscientização e combate desse crime.
É fundamental que produções de true crime sejam guiadas para um caminho oposto ao sensacionalismo. Os noticiários policiais, chamados popularmente de programas policialescos, possuem respingos do gênero em seu formato. Contudo, os discursos reacionários adotados por seus apresentadores acabam por se tornar uma problemática.
Tais atrações alimentam o sentimento de medo nas pessoas e, muitas vezes, geram uma sensação de impunidade. A indignação contra os casos criminais retratados na televisão criam uma descrença do público contra o sistema penal e, por consequência, telespectadores começam a reivindicar projetos que vão na contramão dos direitos humanos.
"O conteúdo desses programas não é ruim somente para as pessoas, individualmente, mas se constitui como um importante problema social. Esses programas têm, indubitavelmente, forte influência para a manutenção e expansão da extrema direita em nosso país", afirma o psicólogo.
Por criar entretenimento a partir da violência, o true crime deve seguir algumas orientações para que sua abordagem não cause danos ao público ou às vítimas do caso retratado.
Pacto Brutal - O Assassinato de Daniella Perez (2022), documentário lançado pela HBO Max, acerta ao não dar palco para Guilherme de Pádua (1969-2022) e Paula Nogueira, responsáveis pelo homicídio da atriz. O longa-metragem mostra a defesa de ambos sem permitir espaço para a criação de uma narrativa de vitimização dos condenados.
Por outro lado, a apresentação de criminosos como intrinsecamente ruins não é aconselhada. "Simplesmente pintar essas pessoas como mau-caráter, psicologicamente perturbadas ou coisa do tipo, não contribui para um debate amplo sobre a criminalidade", ressalta Coelho.
Em 2014, o Uruguai sancionou a Lei de Meios, que proíbe a exibição de imagens com conteúdo violento das 6h às 22h na televisão. Coelho defende a implementação de um regulamento semelhante no Brasil. "Essa medida deveria ser seguida por programas que visem cuidar dos efeitos nefastos de uma programação violenta durante o dia."
O profissional alerta sobre possíveis gatilhos psicológicos que podem ser acionados por atrações de true crime. "As cenas violentas e o que deve ou não aparecer deveria ser pensado junto a pessoas que estudam os efeitos desse tipo de programação para mitigar os efeitos danosos", afirma.
"Não é descartável a hipótese de que os programas podem alimentar ideações ou planejamentos de crimes. Por esse motivo é necessário que a equipe que produz o programa esteja realmente atenta e em contato com especialistas para mapear os feitos possíveis do conteúdo que produzem", completa.
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