ENTREVISTA COM DUBLADORA
REPRODUÇÃO/YOUTUBE E DIVULGAÇÃO/LUANA CHAVES
Halle Bailey, intérprete de Ariel em A Pequena Sereia (2023), e Laura Castro, sua dubladora
Em 2019, os estúdios Walt Disney anunciaram a atriz Halle Bailey como a intérprete de Ariel no remake em live-action de A Pequena Sereia (1989). A mudança da cor de pele do personagem se tornou um incômodo para parte do público, que passou a se manifestar com ataques racistas nas redes sociais. A dubladora Laura Castro, por outro lado, celebrou a novidade. Antes mesmo de ser anunciada como a voz brasileira da princesa no longa-metragem, a jovem de 20 anos se animou com a possibilidade de assistir à representatividade negra em um local de destaque.
Antes da nova Ariel, existiam apenas duas princesas pretas em produções da Disney: Cinderella, no live-action de 1997 protagonizado por Brandy Norwood; e Tiana, da animação A Princesa e o Sapo (2009). A ausência de protagonismo negro em grandes produções afetou a autoestima de Laura, que não se sentia incluída na indústria cinematográfica na infância. "Quando eu não me via, eu me sentia invisível", relata ela em conversa com o Notícias da TV.
"Ver pessoas parecidas comigo na tela fez diferença para o meu crescimento pessoal. Essa releitura de uma princesa clássica, que era branca e agora é negra, é uma correção para mim", pontua. Laura acredita que o live-action se tornou um exponencial para a multiplicidade de narrativas. Aos poucos, o mercado audiovisual se liberta de enredos limitados a pessoas brancas e passa a destacar outras etnias.
Após o anúncio de Halle como protagonista do remake, a #NotMyAriel (Não é minha Ariel, em português) se tornou um dos principais assuntos comentados pelo Twitter. Fãs da animação se mostraram furiosos com a seleção de uma atriz com etnia divergente à Ariel original. Apesar de o tom de pele da princesa não ser relevante para o enredo do filme, internautas tentaram justificar as críticas com base na defesa pela fidelidade à obra.
"As pessoas que trouxeram esses ataques racistas são pessoas sem consciência da diferença da representatividade. Tem uma certa ignorância. São pessoas que, claramente, nem assistiram ao filme. E, tipo, é uma sereia, sabe? Uma sereia pode ser azul. O mito da sereia tem origem na África", explica Laura.
A artista relata que também sofreu com episódios de racismo durante sua carreira. Além de dubladora, ela também é cantora e atriz. Laura participou do reality show The Voice Kids em 2017 e, dois anos depois, foi convidada pela Sony Music para compor o grupo teen BFF Girls. Ao substituir uma ex-integrante da banda, a jovem teve contato com os primeiros ataques racistas na internet.
"Essa narrativa foi muito distorcida na época", testemunha. Boatos de que Laura teria "puxado o tapete" da ex-integrante passaram a ser disseminados nas redes sociais. "Comentários muito racistas no YouTube, com a tentativa de me comparar com a ex-participante da banda. Eu nunca nem tinha conhecido ela. Recebi o convite depois de ela ter saído. Comentavam minha beleza, aparência física".
Halle não comentou abertamente sobre os episódios de racismo que sofreu. No entanto, confessou que sentiu uma pressão ao protagonizar o filme. Após o lançamento do trailer do live-action, um vídeo que compilava a reação positiva de várias crianças negras emocionou a atriz. "Isso significa o mundo para mim. Obrigado a todos pelo apoio inabalável", comentou em seu perfil no Instagram.
A reprovação de artistas negros em papéis de alta visibilidade não é inédita. Neste ano, a escalação de Adele James como protagonista da série Rainha Cleópatra, na Netflix, também alimentou debates encalorados na internet. A interpretação de alguém que foge dos padrões estéticos da atriz Elizabeth Taylor, que se imortalizou como a figura egípcia em 1963, fomentou ataques racistas.
Ronaldo Coelho, psicólogo e professor de psicanálise em São Paulo, aponta que, sem a discussão sobre representatividade na mídia, pessoas pretas perdem a possibilidade de "sentir, fantasiar, imaginar e sonhar". Voltado para o público infantil, o live-action de A Pequena Sereia permite que crianças negras finalmente assistam a si mesmas.
"Nós somos feitos de histórias. Sempre que vemos uma história e nos reconhecemos naquele personagem, nos identificamos com ele e pensamos em possibilidades para nossa vida", diz o psicólogo ao Notícias da TV.
Quando todos que vejo nos filmes ou na televisão não se parecem comigo, é como se eu não estivesse autorizado a ser um dos personagens daquela história. Por exemplo, se todas as princesas e heroínas são brancas, como fica para a criança negra as possibilidades de se imaginar poderosa ou valiosa como pessoa?
Laura comenta previsões otimistas para o futuro da inclusão na indústria artística. Durante muitos anos, personagens negros eram limitados a papéis que abordavam a criminalidade. O desenvolvimento de projetos que falem sobre a cultura negra, sem conectá-la à violência, cria novas oportunidades de identificação para a comunidade preta.
"Justamente para criar uma autoestima, criar possibilidades na cabeça de pessoas para elas não acharem que precisam se limitar", justifica. "Essa foi a forma que consegui sair dessa invisibilidade que eu via. Só consegui criar um caminho para mim como artista a partir do momento que passei a receber oportunidades, que me deram espaço para isso e comecei a ver que pessoas como eu estavam conseguindo fazer coisas assim."
Laura revela que é uma pessoa muito perfeccionista. Ela conta que, durante seus estudos no teatro musical, não dividia a sala de aula com outras pessoas de sua cor. As poucas oportunidades no meio artístico a fizeram desenvolver uma cobrança interna. Ao ser anunciada como dubladora de Ariel, a atriz rapidamente sentiu a pressão do espaço conquistado.
Nos estúdios, a dubladora relembra que era recebida com um cartaz escrito "Calma" pelo produtor da trilha sonora. "É um processo. Lógico que tem essa ansiedade, essa cobrança, mas eu tive total amparo e apoio de toda a equipe. Desde o primeiro dia, acreditavam em mim e me apoiavam. Me ajudavam mais do que eu mesma."
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