AMAURI SOARES
Divulgação/Globo
Amauri Soares, diretor executivo da TV e dos Estúdios Globo, em evento no início de abril no Rio de Janeiro
As novelas da Globo têm passado por grandes mudanças nos últimos anos. A maior delas é a abertura para a diversidade. A emissora chega aos 60 anos nesta semana emplacando uma sequência de heroínas negras em todos os horários de novelas, com uma produção (Volta por Cima) em que atores brancos pela primeira vez são minoria e preparando novos roteiristas negros para serem autores titulares de folhetins.
É uma mudança e tanto para uma empresa que, ainda em seus primeiros anos, impôs um blackface em horário nobre ao escalar um ator branco (Sérgio Cardoso) para interpretar o protagonista negro de A Cabana do Pai Tomás (1969). Ou que, não faz muito tempo, colocou Giovanna Antonelli em uma família "japonesa" (Sol Nascente, 2016) e inventou uma Bahia com elenco majoritariamente branco (Segundo Sol, 2018).
Quem lidera essa transformação é Amauri Soares, de 58 anos, o poderoso diretor executivo da TV e dos Estúdios Globo, maior complexo de produção de TV da América Latina. No início deste mês, em entrevista coletiva, Soares se apresentou a jornalistas como "um homem pardo", para surpresa geral.
"Eu me declaro pardo porque meu pai era um homem negro, baiano. Minha avó era uma mulher negra, baiana. Mãe solo, retirante. Minha mãe é muito branca, uma descendente de italianos. Eu me conecto com as minhas raízes, sabe?", explicou depois.
Em entrevista exclusiva ao Notícias da TV, Soares diz que a recente onda de retrocesso em políticas de diversidade, após a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, não vai afetar a Globo. A emissora vai continuar batendo metas de diversidade, como as que serão divulgadas em relatório de ESG no fim do mês e que mostram que 63% dos cargos de alta liderança nos estúdios são ocupados por mulheres.
Para Soares, a "diversidade é a maior inovação" pela qual a Globo vem passando. Ele aposta em novos autores, novos rostos e novas narrativas como um processo para renovar a telenovela. "A diversidade traz novos criadores, novas vivências, novas histórias. Então, nós estamos, por meio da construção da diversidade na criação, tendo uma maior diversidade de ideias, de projetos, de sinopses. Esta é uma grande inovação para o formato de telenovela", diz.
Soares nega que a Globo tenha se tornado uma empresa "woke", refém de ideologias identitárias, como acusam críticos mais à direita do espectro político. "A Globo não vai mudar. A Globo vai continuar sendo a Globo. A gente está mudando muita coisa para a Globo continuar sendo a Globo", sintetiza.
Confira a seguir entrevista de Amauri Soares, concedida no último dia 4:
NOTÍCIAS DA TV - A atriz Bella Campos foi muito criticada nas redes sociais antes mesmo de estrear em Vale Tudo. Disseram que ela não estava à altura de Gloria Pires em 1988. Você não acha que tem racismo nesse julgamento?
AMAURI SOARES - Eu fiquei me perguntando, se ela fosse branca, se haveria isso. Não sei te dizer, mas essa precipitação de ir julgando faz parte das dinâmicas das redes, né? Que bom que pelo menos as pessoas viram e reconheceram, escreveram pedindo desculpas.
E tem muita gente dizendo que a Taís Araujo está melhor [como Raquel] do que Regina Duarte.
É difícil comparar, mas eu acompanhei vários dias no estúdio, fui ver, conversei com a Taís e falei: "É a Taís como a gente nunca viu". Eu não tenho dúvida, está sendo a melhor atuação da carreira da Taís. É outra atuação, é outra atriz de outra geração.
E as duas se falaram, né? Trocaram mensagens. A Regina foi supergenerosa, elogiando. Eu recebi várias mensagens de atores da primeira versão. O Antonio Fagundes mandou uma mensagem linda, um áudio longo, falando: "Tô assistindo à novela. Como é bom ver isso, esses novos atores, que linda que tá a novela. Vai ser melhor do que a nossa versão".
É uma outra versão, 37 anos depois. A gente está muito feliz com o resultado, muito feliz com o elenco. A Manuela [Dias, autora] e o Paulo Silvestrini [diretor artístico] conseguiram. A novela é muito fiel às intenções dos autores [originais], e a gente está falando de Gilberto Braga [1945-2021], mas traz para os dias de hoje de maneira muito bacana. Não é um equilíbrio fácil, e essa novela faz isso. Acho que a gente tá vendo o começo de um fenômeno.
Desde 2022, os Estúdios Globo têm uma diretoria de Diversidade e Inovação. Como é a atuação dessa diretoria? Ela participa das escalações de atores? Ela revisa roteiros?
Eu não conheço outro estúdio que tenha uma diretoria de diversidade ligada diretamente à gestão do estúdio. A área de Diversidade e Inovação é um órgão de apoio e consultoria para os criadores. Ela não trabalha com casting. A condução artística é sempre do autor, do diretor, do diretor de gênero.
A área de Diversidade está sempre à disposição dos criadores para ajudar na construção dos personagens, das trilhas que envolvam aspectos de diversidade, de grupos sub-representados. E ela é formada por pessoas que têm lugar de fala, pessoas que têm vivência nesses grupos sub-representados.
A sua pergunta me dá a oportunidade de falar uma coisa, para que a questão de diversidade também não vire um mal-entendido. Na [entrevista] coletiva [sobre os 60 anos da Globo, em 2 de abril] eu disse que a diversidade não é só uma meta para a gente bater no final do ano, no que diz respeito à criação de conteúdo.
Em outras áreas, nós temos metas. Na TV Globo, a gente trabalha com metas de diversidade há alguns anos, que inclusive vão ser publicadas no relatório de ESG no final deste mês. Há metas específicas de contratação de pessoas de grupos sub-representados em todas as áreas: criação, produção, gestão. E nós estamos indo muito bem com essas metas.
Essas metas valem para a empresa inteira. E valem para a ficção também. No que diz respeito a conteúdo, só a meta não resolve. Por quê? Tem que ser processual, sistêmico e tem que ser uma grande colaboração de todas as áreas da criação.
Porque, se o autor escreve um personagem negro, esse personagem precisa ter as características, a vivência de um personagem negro, as dores e as delícias de ser negro. A área de diversidade ajuda o criador nisso, para ter essa complexidade, para ter essas camadas todas. Esse personagem negro tem uma família negra, as dinâmicas, a vivência de uma família negra. A área de Diversidade apoia nisso.
Se o autor escreve um personagem negro, eu preciso de um ator negro para interpretar esse papel. As cenas de uma família negra serão mais bem construídas em seus detalhes, nuances, ritmo, falas, se o diretor for negro. Então não adianta ter só a meta. É um processo que envolve todo mundo. Hoje nós temos autores negros, diretores negros...
Em todas as novelas?
Em todas. Também é importante deixar claro que um diretor negro não vai só dirigir personagens negros. Não é só um autor negro que vai escrever uma novela que vai ter uma família negra de personagens. Um autor branco também. Então, aí é que é importante ter a diretoria de Diversidade.
Eu vou te dizer, a gente está muito satisfeito com o resultado. A gente tem hoje três protagonistas negras, a gente troca a novela e continua tendo uma protagonista negra. As próximas também serão. Vem aí Dona de Mim, que também tem uma protagonista negra, que é a Clara Moneke, que vai ser babá de uma criança, também negra, criada por uma família branca.
Então, de novo pra resumir, tem meta. Tem meta pra tudo, pra todo mundo. E a gente tá indo muito bem com as metas, superamos todas as metas, mas só a meta não resolve.
Novelas agora têm que ter, por exemplo, 40% do elenco negro?
Não é assim, tem que ter representação, refletir o país que está nos assistindo, e esse é um compromisso dos criadores. Porque não dá pra ser apenas a meta, dizer ao criador que a meta dele é X de personagem porque ele está escrevendo a história dele. O que a gente faz é olhar essa história à luz da diversidade que decidimos ter na tela.
Talvez tenha ficado um mal-entendido com relação à minha fala, de que na criação não tem meta. Tem meta, mas ela não é um número, é um compromisso, que já está sendo gerido por um grupo que tem diversidade. Nós temos quatro autores negros escrevendo novela.
Escrevendo novelas próximas?
Próximas novelas vindo aí.
Como autores titulares?
Como titulares. Alguns jovens titulares vão ter o acompanhamento, o apoio de autores mais experientes. Mas a história é dele, a novela é dele. Será uma ajuda mais com a métrica de capítulos.
Então, olha só: autores negros, diretores negros, figuristas negros, maquiadores negros, produtores negros, casting, atores e atrizes negros. Se não for assim, não adianta ter a meta. Porque também você pode ter o número que você quer de personagens não-brancos mal construídos. Aí você cria outro problema, que é você ter um número, mas a representação não ser adequada.
Formar autores e diretores indígenas é mais complicado?
Nós temos autores indígenas que estão trabalhando em diferentes projetos. Nós já fizemos um produto, que foi o do Falas Indígenas, totalmente criado por autores indígenas, e a gente está fazendo o segundo agora, em que autores indígenas estão na sala de roteiro.
O projeto Falas visa a formação de novos roteiristas?
Não quero parecer que eu estou te enrolando, não, mas é um processo, porque você traz um autor indígena para cá, e ele já escreveu dramaturgia? Ele já escreveu uma novela? Ele já escreveu variedade? Já escreveu um programa de auditório? Provavelmente não tem essa experiência, mas isso não pode impedir que ele esteja aqui.
Então a gente traz, ele faz parte de um processo de formação, ele começa como colaborador numa sala de roteiro, ele começa a apresentar as ideias originais dele, essas ideias são avaliadas, e aí de novo o papel da [área] de Diversidade.
A Globo monitora o tempo de tela que cada etnia, cada grupo, ocupa nas novelas?
Não olhamos o tempo de tela, mas quando você olha a composição dos personagens, quem é protagonista, quem é coadjuvante, você tem uma ideia de quanto cada um vai ocupar de tela. Não adianta escalar um número grande de atores negros para fazer só personagens secundários. Ou para fazer vilão.
Uma crítica que se faz à novela Garota do Momento é que ela mostra o racismo, mas pouco discute o racismo. Vocês também têm essa percepção?
Acho injusto com a novela, porque Garota do Momento é uma das inflexões mais importantes que a gente fez nesse movimento, porque ela é uma novela de época, ela coloca no centro dessa trama de época, nos 1950 no Brasil, uma personagem negra e todo um rol de personagens negros construídos, num espaço que nos anos 1950 certamente não seria ocupado por uma mulher negra.
Isso já é uma inflexão importante. Esta personagem, sendo negra, traz à tona aspectos de racismo que a novela vem mostrando e que a novela endereça e vai voltar a endereçar em determinados momentos. Então, as cenas de racismo acontecem, as pessoas veem, ficam desconfortáveis e você vai ver os personagens reagindo e os contrapontos acontecendo na medida em que a história avançar.
Garota do Momento fez essa inflexão de diversidade para uma trama de época, reescrevendo essa história, trazendo a questão do racismo para o centro da trama. Então, eu acho que é uma contribuição muito grande. E que foi construída por uma equipe bastante diversa.
Empresas norte-americanas estão voltando atrás em suas políticas de diversidade, inclusão. E na Globo, há esse risco de uma volta atrás?
Não. Nós somos empresa brasileira, a gente faz conteúdo brasileiro para o Brasil, então tendências e mudanças de rumo da indústria americana não dialogam com o que a gente faz aqui.
Eu considero a diversidade a maior inovação da criação hoje. Porque a diversidade traz novos criadores, traz criadores com novas vivências, novas vivências levam a novas histórias. Então, nós estamos, naturalmente, por meio da construção da diversidade na criação, tendo uma maior diversidade de ideias, de projetos, de sinopses. Esta é uma grande inovação para o formato de telenovela.
A médio prazo, a diversidade pode trazer uma renovação?
Já está trazendo. Porque um autor negro teve experiências de vida diferentes de um autor branco. E essas novas experiências de vida refletem no jeito que ele cria, nas histórias que ele quer criar, e isso já está enriquecendo o portfólio.
Mas esses autores ainda estão sendo formados, certo?
A gente está formando e tem alguns que já estão no estágio final. O estágio final é "escreva sua novela". É o caso do Elísio [Lopes Jr., coautor de Amor Perfeito], é o caso do Juan [Jullian, colaborador de Dona de Mim].
Uma outra crítica que se faz hoje é que, por causa de tanta diversidade, a Globo virou uma empresa woke. Como você vê isso?
É, não. Existe uma preocupação se a Globo vai mudar. E eu digo, de verdade: eu acho que essa preocupação reflete algo muito positivo, que é o vínculo que as pessoas têm com a Globo. Existe um respeito, existe um afeto, existe um vínculo com os conteúdos da Globo, existe esse laço da sociedade brasileira com a Globo, e isso às vezes se reflete num medo de que a Globo vai mudar.
A Globo não vai mudar. A Globo vai continuar sendo a Globo. A gente está mudando muita coisa para a Globo continuar sendo a Globo. Mudança na tecnologia, nos formatos, nos modelos de contratação, para a Globo continuar sendo a Globo. O que é ser Globo? É andar junto, é buscar andar junto com a sociedade.
Então, você disse, existe uma crítica. Não é bem uma crítica, parece que é uma preocupação. Se a Globo vai continuar sendo progressista é outra preocupação. A Globo vai passar a ser mais conservadora? Então, assim, são preocupações que às vezes são até antagônicas. É porque existe um vínculo, e a Globo segue sendo relevante na vida das pessoas.
A Globo vai continuar propondo temas para debate, ela vai continuar propondo a agenda, causas. A gente tem feito isso ao longo de 60 anos.
Um dos pontos apontados como frágeis da política de diversidade da Globo é a representatividade dos LGBT+. É possível aumentar os personagens LGBTs sem ferir a susceptibilidade de um público mais conservador?
Eu acho que sim. Primeiro, a Globo tem sido a grande propositora dessa pauta. Basta olhar para a nossa tela, basta ver nossas histórias. Como eu te disse, continuaremos fazendo isso. Nós temos autores LGBT+, diretores LGBT+, produtores LGBT+, executivos LGBT+ que participam ativamente dessa conversa.
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