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NEWTON CANNITO

Globo virou refém do politicamente correto e só faz novela chata, diz autor anti-woke

Divulgação/Jorge Bispo e Arquivo pessoal

Os roteiristas Manuela Dias, autora do remake de Vale Tudo, e Newton Cannito; ela usa camiseta com a frase 'Eu matei Odete Roitman'; ele usa camisa estampada

Manuela Dias, autora do remake de Vale Tudo, e Newton Cannito: 'Globo está dominada pelo woke'

DANIEL CASTRO

dcastro@noticiasdatv.com

Publicado em 24/10/2024 - 6h10

O remake de Vale Tudo terá uma Odete Roitman "humanizada" porque a Globo hoje está tomada pela "ideologia woke", um pensamento que, em nome da justiça social e do combate ao preconceito, está produzindo novelas chatas e que não empolgam a audiência ao tentar lacrar no lugar de escandalizar.

A opinião é do cineasta Newton Cannito, de 50 anos, que acaba de lançar o livro Pequeno Manual Anti-Woke (apenas digital), no qual afirma que a arte brasileira, de forma geral, tem sido dominada por agendas identitárias e por uma postura moralista que afasta o público. Ele também é autor, em parceria com o também diretor Josias Teófilo, do recém-lançado manifesto Pela Liberdade de Expressão nas Artes.

Doutor em Audiovisual pela USP (Universidade de São Paulo), Cannito foi criador e roteirista das premiadas séries 9mm: São Paulo (Fox, 2008-2011) e Unidade Básica (Universal Channel). Ele é um dos roteiristas do filme Silvio (2024), com Rodrigo Faro, e acaba de escrever a série Iceberg, em gravação pelo canal Box Brazil na Bahia, em que aborda temas como neonazismo e ataques a tiros em escolas públicas.

Na Globo, Cannito colaborou com a série Cidade dos Homens (2002-2018) e em Joia Rara (2013). Na novela das seis vencedora do Emmy Internacional, trabalhou com Manuela Dias, escalada para a Globo para reescrever Vale Tudo (1988), substituta de Mania de Você, a quem ele agora faz duras críticas.

Na semana passada, em entrevista à Folha de S.Paulo, a autora de Amor de Mãe (2019) deu a entender que na sua releitura do clássico de Gilberto Braga a vilã Odete Roitman não dirá que o Brasil é uma "mistura de raças que não deu certo", porque estamos "saturados" de falar mal do país.

Para Cannito, isso é puro woke. O termo, que significa "alerta" (ou "acordado") na língua inglesa, é usado para definir aqueles que estão atentos contra a discriminação e a injustiça, mas também pode ser um insulto. Há quem se refira aos wokes como hipócritas que se julgam iluminados, moralmente superiores, e impõem suas ideias de maneira intimidatória, muitas vezes utilizando o cancelamento nas redes sociais.

"Hoje as novelas ficam passando princípio moral o tempo todo, lacrando. A Globo contribuiu muito para os direitos das mulheres com suas novelas clássicas. Hoje em dia, não. É lacrar, botar dedinho na cara, novela tem lição de moral no meio", diz Cannito, que acusa a cúpula da Globo de se render ao woke como uma forma de tirar o "liberdade autoral dos artistas". Procurada pelo Notícias da TV, a Globo não comentou.

Secretário nacional do Audiovisual em 2010, no segundo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, Cannito sempre teve conexões com a esquerda e é filiado ao PDT, mas hoje se define como de "centro bipolar". Ele lidera um grupo de roteiristas e diretores, os Artistas Livres, que se declaram contra o woke. Confira a entrevista:

NOTÍCIAS DA TV - A Globo virou refém do politicamente correto?
NEWTON CANNITO - Sim, muito. Sempre existiram grupos de pressão, mas a gente sabia dialogar e não ficava refém deles. Agora, está completamente refém. Qualquer grupo de pressão pode reclamar e cancelar, e aí [a emissora] fica com medo, virou um padrão. O que aconteceu é uma tragédia. Imagina uma empresa no porte da Globo, uma tradição de autores fortes, uma dramaturgia que conquistou o mundo, e simplesmente fica refém de uma pauta, se perde completamente e se afasta do público?

Se a Globo acertasse, a gente teria potencial de fazer conteúdos para o mundo todo. Tinha potencial para ser tipo a Coreia. Mas, ao contrário, ela [Globo] simplesmente passou a seguir uma pauta importada, estrangeira, com valores que não dialogam com o povo brasileiro. Ela não só não conquista o público internacional, como se afasta do brasileiro e faz esse mico, virou um mico.

O coreano dá bola para o woke? Não dá, né? Por isso que a produção da Coreia do Sul faz sucesso mundial. Tem todo tipo de tema em Round 6. O tema central de Round 6 é o endividamento, que não está na pauta woke, porque na pauta woke não se pode dizer que as pessoas são endividadas, e esse é o principal problema brasileiro hoje, 70% da população está endividada.

Isso tudo é renegado. A única coisa que interessa [na dramaturgia da Globo] são as pautas woke de racismo, feminismo, não sei o quê. É uma tragédia. 

Como é que se chegou nesse ponto?
Em seu auge, a Globo trazia gente boa de fora e tinha coragem de inovar e botar autores polêmicos e transgressores. Janete [Clair], Dias Gomes, o Aguinaldo [Silva], o Gilberto [Braga], todos eram autores transgressores, pessoas que tinham coragem. Agora, o que está ocorrendo na Globo acontece muito com empresas em fim de trajetória. Ela fica muito grande, fica uma bolha, fica corporativa, começa a fazer plano de carreira e vai botando os mais bem disciplinados. Então, ela [Globo] acabou botando os autores que são mais bonzinhos.

Quando eu trabalhei na Globo, tinha essa piada que era "Pra você dar certo na Globo, tem que falar baixo". E realmente se provou. Pessoal que era mais disciplinado conseguiu. E aí eles são mais disciplinados para seguir a pauta [woke]. Todas as decisões criativas são para seguir a pauta. Então eles ficam seguindo a pauta oficial da televisão, são muito disciplinados. Isso não funciona em arte. A arte só funciona com gente que tem coragem de inovar, que tem visão autoral, que tem coragem de arriscar.

Como o woke interfere na dramaturgia da Globo?
A questão é que o woke é uma ideologia inteira, ela define que o preto é mais bonzinho que o branco. E assim vai, né? Então, em todas as pautas o woke vai fazendo maniqueísmo, bom e mau, e isso tira a graça. Aí vem [a novela] Travessia [2022], e os caras não conseguem fazer vilão direito. Você pega Nos Tempos do Imperador [2021], uma novela de época, e eles ficam o tempo todo lacrando sobre temas contemporâneos. Perde todo o frescor de época, toda a diversão de você estar em outra época.

Hoje as novelas ficam passando princípio moral o tempo todo, lacrando. A Globo contribuiu muito para os direitos das mulheres com suas novelas clássicas. Hoje em dia, não. É lacrar, botar dedinho na cara, novela tem lição de moral no meio.

Hoje em dia, a visão da empresa é a visão woke. Eles querem que todos os autores sigam a visão da empresa. E não dão liberdade autoral, porque eles não querem nenhuma audiência. Isso é uma tragédia, porque eles estão perdendo audiência e estão mais preocupados em manter a sua bolha de valores ideológicos.

Como você recebeu as declarações de Manuela Dias, que está adaptando Vale Tudo, de que não é legal falar mal do Brasil nos dias atuais?
Tenho a impressão de que as pessoas estão numa bolha tão grande que perderam um pouco a noção, né? Eu já vi que vai ter [em Vale Tudo] os teminhas atuais. As adaptações de novelas sempre trazem temas atuais. Não é esse o problema. As pessoas às vezes criticam isso, mas não é esse o problema. O problema principal é que Odete Roitman não pode falar mal do Brasil porque estamos em outro momento. De que outro momento você está falando? Não estou entendendo.

Outra coisa que o woke confunde muito é que o woke quer que o vilão fale coisas que ele [autor] concorda. É como se todos os personagens falassem coisas que ele concorda. Por isso que eles [roteiristas woke] não conseguem construir vilão direito. Então, ela [Manuela Dias] vai lá, pega a Odete Roitman e tira a vilania dela. Ela não vai poder ser classista, ser racista, ela não vai poder falar mal do Brasil. E por que não pode falar mal do Brasil? Então, é uma classe artística inteira que compra o discurso oficial, do Estado, que está em parceria com a empresa que ela trabalha.

Outro exemplo é a Heleninha, que não pode ser bêbada porque não hoje dá para rir de bêbado. A relação que a gente tinha com a Heleninha, em Vale Tudo, era uma relação de tragicomédia, de amor e ódio. Às vezes, você podia até se divertir com aquele sofrimento, mas logo depois você se conscientizava e você se sentia parte. Aquilo gerou um grande debate sobre alcoolismo na época, justamente por ter a coragem de representar até o fim a situação.

Agora o que predomina é um bom tom, o woke é muito bom tom, que fica sempre tirando o extremo, o extremo de mau gosto. Então é aquela coisa do bom gosto, de não chocar ninguém. Isso tudo perde audiência, gente. Televisão é pra chocar, é pra fazer escândalo. Mas o woke é contra o escândalo.

O problema da audiência das novelas não é a internet. Não é por causa da internet que as pessoas não assistem. É porque não provoca escândalo nenhum, porque toda novela é pautada em consensos. O telespectador já sabe, desde o começo, quem é bom e quem é mau, e isso não incomoda ninguém. Assim como são autores bem comportados, é uma dramaturgia bem comportada.

Antigamente, se a pessoa errava, as pessoas trocavam. Agora não, erra e continua [no cargo]. É impressionante isso. A fidelidade ideológica está mais importante hoje do que o próprio resultado estético. Ou o resultado comercial.

Está em tempo ainda, a Globo é uma empresa muito legal, muito importante, queria que a matéria citasse isso, já ajudou a construir a nossa identidade nacional, então ainda está em tempo de dar uma guinada, de se libertar dessa ideologia importada, que não dialoga com o povo brasileiro.

Os autores de agora estão preocupados em conquistar os evangélicos e tal, mas daí ficam tentando sempre educar o povo para os seus valores. Toda discussão é como educar o povo para os seus valores. Não é uma discussão mais de dialogar com o povo. Não, isso não funciona, amigo, não funciona. Mas está em tempo ainda de a Globo fazer uma virada, tem que ser urgente, contratar gente profissional mesmo para fazer dramaturgia e parar de fazer pedagogia.

Como a ideologia woke se instalou na dramaturgia da Globo? É uma coisa que vem de cima, da direção da empresa ou vem de autores e atores?
É um processo que vem de cima para baixo e de baixo para cima. Com certeza, é uma orientação da empresa. Acho que também é direito das empresas terem sua ideologia. O Globo sempre teve alguma. Hoje, a ideologia woke é a ideologia do sistema, como a gente sabe, hegemônica, financiada por bancos, pelo Estado brasileiro e também pelas grandes empresas, via fundos internacionais. Então, a Globo tem a ideologia dela.

Mas, antigamente, a Globo deixava espaço para os artistas serem mais livres. Agora está deixando menos espaço. Mas isso vem da própria classe artística também. Porque a classe artística ficou inteira woke.

Obviamente, não é que a classe artística é inteira assim. Como sabemos, abrimos o [grupo] Artistas Livres, que reúne muita gente que não concorda, mas todo mundo que não concorda foi cancelado ou ficou silenciado por medo de ser cancelado. Os artistas rebeldes não estão mais na moda. Estão  na moda os artistas bem comportados que repetem a pautinha oficial. Deu no que deu.

Poderia dar um exemplo do que é woke numa novela da Globo? Elas por Elas [2023], por exemplo. Não é o fato de o Mario Fofoca ter sido interpretado por um ator negro, Lázaro Ramos, correto? Nem de uma das atrizes ser uma mulher trans? Como explicar o que é woke e o que é inclusão e representatividade?
A questão da representatividade sempre existiu, antes da ideologia woke. A gente sempre defendeu isso. O woke finge que não existe mulato, que não existe mestiço brasileiro, sendo que a maioria da população brasileira é mestiça. E a ideologia woke tem esse maniqueísmo de personagem. Não é ter mais preto, a questão é que você não pode botar um preto vilão. Os vilões têm que ser todos homens brancos héteros. Então, não é questão de representatividade. A questão é de tratar o ser humano com a complexidade dos personagens.

Priorizar [negros] na escalação pode ser um problema. O Lázaro [Ramos] é um grande ator, mas nunca foi um grande comediante. Tem que falar a verdade, né? Ele segura ali como escada de comédia, e para drama ele é bom. Já teve algumas comédias que ele participou que foram interessantes, porque ele segurava como escada de comédia. Mas em Elas por Elas tinha que botar comediante mesmo. Mas os comediantes não se rendem completamente ao discurso, e também não entram, né?

Podemos dizer que por causa da ideologia woke, as novelas estão mais chatas, sem apelo. Mas é só isso?
As novelas estão sem apelo. A novelas no auge davam debate. O autor não dava uma opinião, ele levantava a questão e deixava o povo debater. Para uma autora woke, a Heleninha [de Vale Tudo] bêbada é uma exploração da tragédia do alcoolismo. Ela [Manuela Dias] vai fazer um drama social sóbrio sobre isso. Ela vai fazer um filme didático mostrando como é ruim beber, o que a gente sabe que é verdade.

Fazer um drama social sobre alcoolismo com a Heleninha é, basicamente, fazer a novela ficar mais chata. É isso que os wokes fazem. E eu acho que isso enfraquece o próprio debate. A Heleninha [de 1988] fazendo escândalos levantou muito mais a questão e revelou muito sobre o alcoolismo do que vai revelar a dela [Manuela Dias], que só ficará dando liçãozinha de moral.

Porque quem é alcoólatra sabe que não deve ser alcoólatra. Não adianta ficar dando lição de moral. Propaganda assim não funciona. O que funciona é você mostrar mesmo as profundezas, como pode ser ruim aquilo, como o pessoal fazia em Vale Tudo. Televisão é espetáculo. Tem que ter som e fúria.


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