DAMA DO TEATRO
BOB SOUSA/BLOG DO ARCANJO
Eva Wilma em entrevista realizada em 2013; dama do teatro morreu na noite de sábado (15)
"A morte é a única certeza da vida. Já passei pela experiência da morte quando perdi meus pais e o Carlos. É preciso continuar", disse Eva Wilma na primeira vez que a entrevistei em seu apartamento, no bairro do Itaim Bibi, zona sul de São Paulo. A grande atriz brasileira morreu na noite de sábado (15), aos 87 anos, vítima de complicações de um câncer de ovário, deixando o público brasileiro em luto profundo ao lado de seus dois filhos, John Herbert Jr. e Vivien Buckup.
Era final de maio de 2007, meu primeiro ano em São Paulo. Havia me mudado para a capital paulista no fim de janeiro daquele ano, vindo de Belo Horizonte (MG) recém-formado em Comunicação Social pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e selecionado para o Curso Abril de Jornalismo.
Na sequência, logo consegui emprego de repórter na revista Contigo!, publicação na qual acabei ganhando uma coluna sobre teatro. Foi aí que sugeri para Denise Gianoglio, então minha redatora-chefe, a entrevista com uma das atrizes que mais admirava.
Quando adolescente, eu não perdia um episódio da série Mulher, exibida entre 1998 e 1999 pela Globo, na qual Eva vivia a Marta, médica experiente que atendia pacientes sempre em situação de risco, de saúde ou social, ao lado da companheira Cristina, papel de Patrícia Pillar.
Antes, eu já havia me fascinado com a inesquecível vilã Altiva, em 1997, que infernizava a pequena Greenville da novela A Indomada, de Aguinaldo Silva, um de seus icônicos papéis na televisão, com seu divertido sotaque britânico do sertão.
A admiração por Eva Wilma era também herança de família, já que desde a minha infância recordo o carinho com que minha mãe, Nina, falava sobre a série Alô Doçura, que Eva protagonizou com o primeiro marido, John Herbert (1929-2011), na TV Tupi, entre 1953 e 1963, pioneira na sitcom urbana, quatro décadas antes de sucessos do gênero com atrações como Friends.
Outro trabalho de Eva que sempre era comentado em casa foi Mulheres de Areia, novela na mesma extinta TV Tupi em 1973, na qual deu vida às inesquecíveis gêmeas Ruth e Raquel, exatamente duas décadas depois vividas por Gloria Pires, e na qual Eva fez par com seu segundo marido e grande amor da vida, Carlos Zara (1930-2002).
Mas, voltemos ao apartamento de Eva Wilma na fria tarde de maio de 2007, há exatos 14 anos. Quando combinei a entrevista, Eva me perguntou se poderíamos fazer as fotos no teatro, já que estaria maquiada e pronta para o espetáculo O Manifesto.
A peça era um grande sucesso à época nos palcos com ela e Othon Bastos na pele de um casal aristocrata inglês em crise ideológica. A intérprete vivia a mesma personagem que na Broadway foi interpretada pela icônica Jessica Tandy (1909-1994).
JOÃO CALDAS/DIVULGAÇÃO
Othon Bastos e Eva Wilma em O Manifesto
Respondi que sim, tudo bem. Ela ficou mais satisfeita, dizendo que, de tal modo, poderia estar mais à vontade em casa, para me receber apenas para nossa conversa, sem fotos.
Foi a própria Eva quem abriu a porta do apartamento quando lá cheguei naquela segunda-feira. Estava vestida de forma simples, sem maquiagem e disse que se encontrava sozinha no apartamento no qual vivia, naquela época, havia 27 anos, e onde tinha sido muito feliz ao lado de Carlos Zara.
Aliás, a presença do marido que ela havia perdido em dezembro de 2002 era intensa na ampla sala, decorada com muitas fotos dele e do casal. Ao relembrar o passado de bailarina com destaque nas comemorações do 4º Centenário, Eva recordou a perseguição que descendentes de alemães, como ela, sofreram no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
"Eu nunca me senti estranha. Mas houve muita repressão aos alemães que moravam no Brasil naquele período. Nós acabamos perdendo um casarão que nossa família tinha", contou.
Dias antes da entrevista, Eva havia acabado de estrear o espetáculo, o que por si só havia sido um grande feito, já que ela tinha saído de uma internação hospitalar um dia antes. "Fui para o hospital na quarta e na sexta já havia recebido alta. No sábado, estreei com liberação do médico", comentou, satisfeita, fazendo uma confissão na sequência.
"Na semana seguinte, encontrei uma conhecida, que me perguntou se eu estava fazendo a peça. Ao responder que sim, ela disse que precisava correr para me ver. Aquilo me ofendeu", confidenciou, aproveitando a reportagem para mandar o recado à falsa amiga.
Apesar de não ter se recusado a responder à pergunta sobre como lidava com a morte, cuja resposta abre este texto, Eva queria mesmo era saber da vida. Tanto que papo vai, papo vem, ela notou meu sotaque e sentenciou: "Olha, você é mineiro, deve estar morrendo de vontade de tomar um café. Quer um? É bom que espanta o frio".
Edson LOPES JR./DIVULGAÇÃO
Eva Wilma em O Que Terá Acontecido a Baby Jane
Eu, obviamente, respondi que sim. Então, Eva Wilma, aquela atriz que havia povoado toda minha infância e adolescência com personagens inesquecíveis na TV da sala de estar em Belo Horizonte, me pegou pela mão, me levou à cozinha, onde ela mesma, na maior simplicidade do mundo, me passou um café quentinho, e que realmente espantou o frio daquela gélida tarde paulistana e que ficou mais quente com nosso diálogo.
Depois, passei por inúmeras redações e nos vimos inúmeras vezes. Sempre que Eva Wilma apresentava uma peça, fazia questão de não só estar na plateia, como conceder uma cobertura à altura de seu talento.
Ela, generosa, sempre me recebeu no camarim, como aconteceu no Teatro Renaissance, em 2013, quando encenou a obra Azul Resplendor ao lado de Pedro Paulo Rangel, ou no Teatro Porto Seguro em 2016, quando brilhou com Nicette Bruno no espetáculo O Que Terá Acontecido a Baby Jane?, sob direção de Charles Möeller e Claudio Botelho, um dos momentos mais sublimes do teatro recente feito no Brasil.
Eva ainda voltou ao palco na divertida comédia Quarta-Feira, sem Falta, Lá em Casa, em 2018, no mesmo Teatro Porto Seguro, ao lado de Suely Franco, também fazendo uma formidável dupla --depois, nesta mesma peça, Eva foi substituída por Nicette Bruno, que também perdemos recentemente, em dezembro de 2020, para a Covid19.
Mesmo tendo se tornado uma grande estrela da televisão, onde brilhou desde sempre --basta recordar o sucesso recente da alcoólatra Fábia, em Verdades Secretas, de 2015-- Eva Wilma jamais perdeu a conexão direta com o público.
edson lopes jr./Divulgação
Nicette Bruno e Eva Wilma em 2016
Atriz sofisticada na TV, teatro ou cinema, mantinha o amor ao ofício nos palcos, pelo qual nutriu paixão incomensurável e onde fez personagens que entraram para a história, como a Blanche DuBois de Um Bonde Chamado Desejo, em 1974.
Com seu farto talento, ao longo da bem-sucedida carreira, ganhou todos os prêmios do país. Tive a honra de ser apresentador da cerimônia do Prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Artes) quando ela ganhou, emocionada, o Grande Prêmio da Crítica, em 2014.
Eva Wilma esteve no palco, com glória, até o fim. E foi, obviamente, aplaudida de pé ao fim de cada sessão. Como acontece agora, em sua despedida. Eva Wilma permanecerá no imaginário da dramaturgia brasileira como uma das maiores atrizes de todos os tempos.
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MIGUEL ARCANJO PRADO é jornalista pela UFMG, pós-graduado em Mídia, Informação e Cultura pela ECA-USP e mestre em Artes pela Unesp. É crítico da APCA, criador do Prêmio Arcanjo de Cultura e coordena a Extensão Cultural da SP Escola de Teatro. Passou por Globo, Abril, Folha, Record, Band e UOL. Clique para ver mais textos do Miguel e conheça também o Blog do Arcanjo
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