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Política cultural

Ancine cancela R$ 1 mi de dinheiro público em série 'pornográfica'

Fotos: Reprodução/HBO

Pedro Henrique Moutinho desenha a mineira Juliane Ribeiro em Belo Horizonte; ela tira toda a roupa - Fotos: Reprodução/HBO

Pedro Henrique Moutinho desenha a mineira Juliane Ribeiro em Belo Horizonte; ela tira toda a roupa

DANIEL CASTRO

Publicado em 9/3/2015 - 4h37

A Ancine (Agência Nacional do Cinema) cancelou a liberação de R$ 1,063 milhão para a produção da segunda temporada de uma série de TV que considera "pornográfica" e possivelmente incentivadora "da prática de turismo sexual". Órgão do governo federal, a agência estuda eventuais medidas contra a primeira temporada de Mulher Arte, exibida no ano passado pela HBO, realizada com R$ 755 mil de recursos públicos. Em tom de documentário, a série apresenta mulheres de dez cidades brasileiras nuas e seminuas.

O veto da Ancine causou furor no mercado de produção independente para a TV paga. Foi revelado por Manoel Rangel, presidente da Ancine, para uma plateia de 600 pessoas no Rio Content Market, dez dias atrás. Rangel classificou a obra de "soft pornô". HBO e a produtora da série, a Santa Rita, recusam o rótulo de pornográfica. No mercado, a ação da Ancine gerou discussões sobre o que é pornográfico e erótico, se o veto não seria uma forma de censura artística, sobre o que é legal e o que é moral.

A Ancine alega que só descobriu que Mulher Arte era "pornô" após a exibição da primeira temporada, em julho do ano passado. A essa altura, já tinha autorizado a Santa Rita Filmes a captar dinheiro do artigo 39 da Medida Provisória 2.228-1, de 2001, que permite que programadoras estrangeiras, como a HBO, utilizem parte do Imposto de Renda sobre remessa de lucros ao exterior para a produção de programas realizados por empresas audiovisuais independentes.

Com o Pão de Açúcar ao fundo, Moutinho conversa com mulher carioca em laje de morro

Striptease

Em Mulher Arte, o artista plástico Pedro Henrique Moutinho percorre dez capitais (entre elas São Paulo, Rio, Manaus e Porto Alegre). Ele se apresenta como especialista em desenhar mulheres, "preferencialmente nuas". Enquanto se exibe um clipe de imagens de pontos turísticos das cidades retratadas, Moutinho diz que o objetivo da série "é explorar as diferenças e as cultura desses lugares através da beleza de suas mulheres". Como a mulher mineira "está inserida nesse contexto" de Estado que não tem mar?", ele quer saber. E a paulista, como ela se comporta "cercada de concreto"? 

Com raras variações, o roteiro de Mulher Arte traz a mesma estrutura em todos os episódios: após o clipe de imagens da cidade, Moutinho recebe seis mulheres "representativas" do local. Elas tiram a roupa e fazem pose para ele as desenhar. Ficam apenas de calcinha. Uma delas é selecionada para a segunda parte do programa. Essa vai ficar totalmente nua e posar em diferentes lugares, como uma laje de morro no Rio de Janeiro, um cartão postal de Belo Horizonte ou em um fogão de cozinha.

Enquanto desenha (e as mulheres despem), Moutinho faz perguntas de cunho sexual: "Você acha que a timidez é um traço da mulher mineira ou é parte do charme?", "O que você acha que a mulher carioca tem de especial?" (a marquinha do biquíni é a resposta), "Como é a relação do mineiro com o sexo?", "Mineiro é bom de cama?", "Como é que você depila? Você tira tudo?", "O que você acha de pinto esteticamente?", "E sexo anal, você já fez?", "Uma suruba pode ser interessante?", "Você sente falta de um pinto" (para uma lésbica).

Moutinho prepara modelo para pose sensual, antes de começar a desenhá-la em teste

Não é pornografia

Diretor de produção de Mulher Arte, Marcelo Braga discorda da avaliação da Ancine sobre o conteúdo de sua série. "Não é soft pornô. Mesmo não concordando com a [decisão] da diretoria colegiada [da Ancine] pelo indeferimento da segunda temporada, nós resolvemos acatar. Mas ressaltamos que o projeto não é pornográfico", diz.

Braga define Mulher Arte como uma obra documental seriada. "A série é erótica, não traz nenhum conteúdo gráfico ou visual pornográfico. Seria um desrespeito às mulheres retratadas na série chamá-la de pornográfica. Não é pornô nem soft nem hard. É apenas erotismo", defende. "E não existe nenhuma redação na regulamentação da Ancine que proíba conteúdo erótico. A gente entende que fez um trabalho muito cuidadoso. Tecnicamente, a série cumpre todas as exigências [legais]", afirma.

A HBO também contesta a classificação de obra pornográfica. Em nota, a programadora lembra que "é reconhecida mundialmente por proporcionar liberdade criativa aos seus roteiristas, diretores, produtores e atores" e que isso "também se aplica aos projetos nos quais o canal é coprodutor", caso de Mulher Arte.

"A HBO entende que o fundos do artigo 39 não devem ser usados para produção de conteúdo pornográfico. No entanto, nunca ficou determinado por lei ou regulamentação que Mulher Arte é conteúdo pornográfico. De fato, a HBO recebeu a nota técnica da Ancine sobre o projeto e a recomendação dos reguladores que avaliaram o projeto foi de que ele fosse aprovado para produção".

Todas as mulheres de Manaus foram retratadas por Moutinho entre árvores

Erotismo liberado

Como lembra a HBO, a Ancine foi contraditória. Em nota de 1º de outubro de 2014, técnicos da agência isentaram Mulher Arte do carimbo de pornográfica. Eles concluíram que cada episódio da série tem dois minutos de "cultura local, exibição de imagens da cidade [retratada]", 14 minutos de mulheres seminuas e 14 minutos de mulheres nuas.

"Apesar de certa desproporcionalidade de tempo", defendem os ténicos da agência que a série não se desviou de seu objeto, que "é a busca das belezas naturais por dez cidades brasileiras sempre através do olhar muitifocal do artista [Moutinho], que procura relações entre seu povo, crença, religiões, hábitos e costumes, retratando a partir de seus desenhos a mulher de cada região a ser desvendada".

A nota técnica lembra que "o conteúdo erótico da obra não é proibido pelo arcabouço normativo existente, não havendo vedação de uso de incentivos fiscais para a produção de obras que apresentem erotismo", tanto que a Ancine já aprovou dezenas de filmes com erotismo, como Bruna Surfistinha (2011). A nota se encerra com seu veredicto sobre o questionamento de pornografia: "Consideramos, portanto, que a obra não se classificou como pornográfica".

Modelo fica sem calcinha em pose sensual em um fogão de cozinha de restaurante

Turismo sexual

A diretoria colegiada da Ancine, que reúne os quatro principais executivos do órgão, pediu vistas dos autos do processo de Mulher Arte, em 29 de outubro. Escolhida relatora, a advogada Rosana Alcântara produziu um documento destruindo a nota técnica. Ela conclui que:

1) Por conter 28 minutos de nudez e seminudez e apenas dois minutos de apresentação da cultura local, Mulher Arte deixa claro ao espectador que "o objeto abordado é a mulher e sua nudez".

2) O fato de a legislação não vetar incentivos fiscais para obras com erotismo não quer dizer que "o fomento a obras com finalidade precípua de exploração de conteúdo erótico ou pornográfico esteja dentro do escopo de políticas públicas que a Ancine tem o dever legal de executar".

3) Em um primeiro momento, pode-se descartar a classificação de Mulher Arte como série pornográfica, uma vez que a portaria 342/2009 da Ancine define pornografia como a "exibição explícita de atos sexuais com exposição de órgãos genitais", e não há atos sexuais na obra. Mas os episódios da primeira temporada "são majoritariamente compostos por interações entre um artista plástico e mulheres nuas ou seminuas, em poses sensuais, sendo muitos dos diálogos travados entre os personagens de cunho sexual". Para a relatora, isso caracteriza "a despersonalização e 'objetificação' das mulheres retratadas".

4) Para Alcântara, as imagens das cidades tendem a "assemelhar [a série] a uma linha de programas hoje comum na televisão, que têm em comum a abordagem turística de diferentes locais. A partir do momento em que a obra em questão resume a exploração de diferentes localidades do Brasil à sexualização das mulheres que representariam cada uma delas, é possível, ainda, induzir a sua associação com a prática de turismo sexual".

Mulher tira a calcinha enquanto Pedro Henrique Moutinho a desenha em um caderno

Interesse público

A diretora Rosana Alcântara conclui o voto se dizendo em "dúvida razoável sobre se a obra em questão atende ao interesse público embutido na política de fomento ao audiovisual", mas recomenda a não aprovação da liberação de verbas para a segunda temporada de Mulher Arte, o que foi acatado pelos demais membros da diretoria colegiada da Ancine.

Para quem tem interesse em ver os dez episódios da série, eles estão disponíveis no HBO Go, serviço de video on demand da HBO via streaming, acessível a quem é assinante dos canais HBO.


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