FIM DO MUNDO
REPRODUÇÃO/HBO MAX
Frank (Murray Bartlett) e Bill (Nick Offerman) em The Last of Us: esperança versus conformismo
Depois de uma maratona de todos os episódios já lançados até aqui, The Last of Us realmente prova que merece todos os confetes que já foram lançados sobre a HBO Max. A série consegue algo quase impossível, renovando um gênero --o do apocalipse zumbi-- que não conseguia ir muito além do que George Romero (1940-2017) já tinha proposto no fim dos anos 1960.
Um dos pontos cruciais que faz a adaptação do jogo homônimo ser tão atrativa não é necessariamente a forma como acontece o Armagedom. Em vez de um vírus, um fungo brinca de "relojoeiro cego" em uma mutação capaz de colocar toda a humanidade em risco. Uma premissa que já foi copiada até por Resident Evil em 2017.
Se Romero trazia em seus filmes a horda de zumbis como alegoria da imbecilização dos indivíduos em uma sociedade de consumo, The Last of Us oferece uma saída para o caos provocado pelo capital. Em vez de pessoas sem cérebro em um shopping, a série mostra que o fim do mundo se instala de uma forma até mais próxima para nós --que ignoramos o aviso do cientista no primeiro capítulo sobre o aquecimento global.
A questão é que a produção da HBO oferece a esperança como uma forma de se reorganizar e reconstruir o mundo. A história deixa claro que há uma possibilidade de cura em larga escala e também traz um grupo de pessoas capaz de enfrentar uma ditadura distópico-militar.
Há um incômodo, porém, escondido por trás da causa dos Vagalumes. Eles não são uma entidade necessariamente revolucionária, mas contrarrevolucionária. O objetivo não é criar um novo mundo a partir dos escombros do apocalipse, mas refundar o anterior.
Por outro lado, The Last of Us é talvez uma das tramas que melhor represente o atual estado de "desesperança" da humanidade. Ela parte de um mundo que já tinha acabado, passado pelo próprio Armagedom --a ponto de o filósofo conservador Francis Fukuyama dizer que a democracia liberal é o ponto final das sociedades ocidentais.
Do outro lado do espectro político, bem mais à esquerda, o teórico britânico Mark Fisher (1968-2017) assume que não foi a história que acabou, mas a capacidade humana de inventar outras formas possíveis de vida. As pessoas simplesmente pararam de imaginar, na ficção, outras formas de vida que não sejam as já estabelecidas desde o fim da União Soviética.
Em suma, Fisher diz que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. E, de certa forma, The Last of Us traz uma esperança melancólica por se incluir nesse grupo de obras de ficção --ao lado, por exemplo, de O Expresso do Amanhã (2013).
Joel (Pedro Pascal) é praticamente um mito refundador, que atravessa a história em busca de restabelecer a ordem que existe pré-apocalipse. O jogo até traz outras comunidades, que provavelmente serão abordadas pela série, mas nenhuma delas representa realmente uma quebra. Ao menos, não como são mostradas no gameplay.
O falso realismo que The Last of Us passa, de que é uma história muito mais plausível do que a de Resident Evil 7 (2017), acaba atrapalhando a pensar novas formas de vida. O público poderia achar que é uma viagem digna de Gloria Perez um universo pós-apocaliptico em que homens engravidam --como se um fungo hospedeiro, por si só, já não fosse uma especulação extremamente fantasiosa.
Contudo, essa foi a saída que Octavia Butler (1947-2006) usou para tensionar as questões étnicas e raciais em Filhos de Sangue. Um homem que engravida de uma espécie alienígena obrigatoriamente faz com que a realidade tenha que ser desconstruída em absoluto, questionando papéis de gênero e aludindo a relações interraciais.
The Last of Us não necessariamente precisaria desse subterfúgio, mas seria infinitamente mais interessante como uma saga de fundação e não de refundação. Afinal, se cortar a cabeça de um rei durante a Revolução Francesa foi capaz de mudar quase que por completo a configuração da Europa, imagine o impacto de um fungo mortal.
A Revolução Francesa também passou por diversas contrarrevoluções, mas mesmo esse desejo por "refudanção" não impediu que a humanidade ali quebrasse barreiras: como na Comuna de Paris, o primeiro governo de trabalhadores. O movimento obviamente foi suplantando, com corpos empilhados, dado o perigo de imaginar outro mundo possível.
The Last of Us até tem vislumbres desses mundos possíveis e, se a série seguir fielmente o jogo, também vai ter um momento à la Comuna de Paris. A questão é que a produção abraça muito mais o conformismo. Certo, às vezes até necessário, porque todos nós estamos extremamente cansados de viver essa realidade.
O terceiro episódio, focado no casal Bill (Nick Offerman) e Frank (Murray Bartlett), é um desses momentos de vislumbre. Não só por apresentar representações LGBTQIA+, mas porque eles representam uma microcomunidade fundada em outros valores --como a empatia, que é quase uma sentença de morte em tramas com zumbis.
O fim trágico deles representa bem a fragilidade dessa esperança, mais ou menos como faz --e muito bem-- Black Mirror. A série britânica é absolutamente pessimista e depressiva, mas também tem seus momentos de questionar a realidade. Tal qual o amor como revolução em Hung the DJ e a subversão de um sistema de realidade virtual em prol do afeto em San Junipero.
Assim como The Last of Us, Black Mirror também oferece um corte seco para voltar à trama central um tanto conformista. Quase como Dante Alighieri (1265-1321) que, após um vislumbre de Beatriz no início de A Divina Comédia, precisa passar pelas portas do inferno --as quais trazem, em letras garrafais, "lasciate ogni speranza voi ch'entrate" (deixai toda a esperança vós que entrais, em italiano).
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