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FIM DO MUNDO

Quase perfeita, The Last of Us esconde falha atrás de esperança melancólica

REPRODUÇÃO/HBO MAX

Foto de Murray Bartlett como Frank e Nick Offerman como Bill em The Last of Us

Frank (Murray Bartlett) e Bill (Nick Offerman) em The Last of Us: esperança versus conformismo

DANIEL FARAD

vilela@noticiasdatv.com

Publicado em 19/2/2023 - 6h30

Depois de uma maratona de todos os episódios já lançados até aqui, The Last of Us realmente prova que merece todos os confetes que já foram lançados sobre a HBO Max. A série consegue algo quase impossível, renovando um gênero --o do apocalipse zumbi-- que não conseguia ir muito além do que George Romero (1940-2017) já tinha proposto no fim dos anos 1960.

Um dos pontos cruciais que faz a adaptação do jogo homônimo ser tão atrativa não é necessariamente a forma como acontece o Armagedom. Em vez de um vírus, um fungo brinca de "relojoeiro cego" em uma mutação capaz de colocar toda a humanidade em risco. Uma premissa que já foi copiada até por Resident Evil em 2017.

Se Romero trazia em seus filmes a horda de zumbis como alegoria da imbecilização dos indivíduos em uma sociedade de consumo, The Last of Us oferece uma saída para o caos provocado pelo capital. Em vez de pessoas sem cérebro em um shopping, a série mostra que o fim do mundo se instala de uma forma até mais próxima para nós --que ignoramos o aviso do cientista no primeiro capítulo sobre o aquecimento global.

A questão é que a produção da HBO oferece a esperança como uma forma de se reorganizar e reconstruir o mundo. A história deixa claro que há uma possibilidade de cura em larga escala e também traz um grupo de pessoas capaz de enfrentar uma ditadura distópico-militar.

Há um incômodo, porém, escondido por trás da causa dos Vagalumes. Eles não são uma entidade necessariamente revolucionária, mas contrarrevolucionária. O objetivo não é criar um novo mundo a partir dos escombros do apocalipse, mas refundar o anterior.

Fim da história?

Por outro lado, The Last of Us é talvez uma das tramas que melhor represente o atual estado de "desesperança" da humanidade. Ela parte de um mundo que já tinha acabado, passado pelo próprio Armagedom --a ponto de o filósofo conservador Francis Fukuyama dizer que a democracia liberal é o ponto final das sociedades ocidentais.

Do outro lado do espectro político, bem mais à esquerda, o teórico britânico Mark Fisher (1968-2017) assume que não foi a história que acabou, mas a capacidade humana de inventar outras formas possíveis de vida. As pessoas simplesmente pararam de imaginar, na ficção, outras formas de vida que não sejam as já estabelecidas desde o fim da União Soviética.

Em suma, Fisher diz que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. E, de certa forma, The Last of Us traz uma esperança melancólica por se incluir nesse grupo de obras de ficção --ao lado, por exemplo, de O Expresso do Amanhã (2013).

Joel (Pedro Pascal) é praticamente um mito refundador, que atravessa a história em busca de restabelecer a ordem que existe pré-apocalipse. O jogo até traz outras comunidades, que provavelmente serão abordadas pela série, mas nenhuma delas representa realmente uma quebra. Ao menos, não como são mostradas no gameplay.

Grávidos?

O falso realismo que The Last of Us passa, de que é uma história muito mais plausível do que a de Resident Evil 7 (2017), acaba atrapalhando a pensar novas formas de vida. O público poderia achar que é uma viagem digna de Gloria Perez um universo pós-apocaliptico em que homens engravidam --como se um fungo hospedeiro, por si só, já não fosse uma especulação extremamente fantasiosa.

Contudo, essa foi a saída que Octavia Butler (1947-2006) usou para tensionar as questões étnicas e raciais em Filhos de Sangue. Um homem que engravida de uma espécie alienígena obrigatoriamente faz com que a realidade tenha que ser desconstruída em absoluto, questionando papéis de gênero e aludindo a relações interraciais.

The Last of Us não necessariamente precisaria desse subterfúgio, mas seria infinitamente mais interessante como uma saga de fundação e não de refundação. Afinal, se cortar a cabeça de um rei durante a Revolução Francesa foi capaz de mudar quase que por completo a configuração da Europa, imagine o impacto de um fungo mortal.

Solidariedade

A Revolução Francesa também passou por diversas contrarrevoluções, mas mesmo esse desejo por "refudanção" não impediu que a humanidade ali quebrasse barreiras: como na Comuna de Paris, o primeiro governo de trabalhadores. O movimento obviamente foi suplantando, com corpos empilhados, dado o perigo de imaginar outro mundo possível.

The Last of Us até tem vislumbres desses mundos possíveis e, se a série seguir fielmente o jogo, também vai ter um momento à la Comuna de Paris. A questão é que a produção abraça muito mais o conformismo. Certo, às vezes até necessário, porque todos nós estamos extremamente cansados de viver essa realidade.

O terceiro episódio, focado no casal Bill (Nick Offerman) e Frank (Murray Bartlett), é um desses momentos de vislumbre. Não só por apresentar representações LGBTQIA+, mas porque eles representam uma microcomunidade fundada em outros valores --como a empatia, que é quase uma sentença de morte em tramas com zumbis.

O fim trágico deles representa bem a fragilidade dessa esperança, mais ou menos como faz --e muito bem-- Black Mirror. A série britânica é absolutamente pessimista e depressiva, mas também tem seus momentos de questionar a realidade. Tal qual o amor como revolução em Hung the DJ e a subversão de um sistema de realidade virtual em prol do afeto em San Junipero.

Assim como The Last of Us, Black Mirror também oferece um corte seco para voltar à trama central um tanto conformista. Quase como Dante Alighieri (1265-1321) que, após um vislumbre de Beatriz no início de A Divina Comédia, precisa passar pelas portas do inferno --as quais trazem, em letras garrafais, "lasciate ogni speranza voi ch'entrate" (deixai toda a esperança vós que entrais, em italiano).



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