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REPRODUÇÃO/PRIME VIDEO
Frimes em um dos desafios de Caravana das Drags; participantes vão muito além do exigido
Caravana das Drags é uma das mais gratas surpresas entre os realities do Prime Video. O programa insiste em se apegar a um formato que é uma receita para o desastre, mas as participantes se recusam a entregar menos do que performances de cair o queixo. O resultado é uma espécie de complô divertidíssimo, em que as próprias competidoras decidem: isso aqui vai dar certo e ponto-final.
O problema central do reality é dar destaque para a arte drag, por si só disruptiva e indiferente aos padrões, em um dos formatos mais inflexíveis dos últimos anos. São regras demais, desafios demais, numa velocidade acelerada demais. Por outro lado, a sorte é que o elenco faz questão de extrapolar os limites episódio após episódio --ainda que pisar fora da linha seja invariavelmente cavar (ou quase) a própria eliminação.
O terceiro episódio, cujo desafio era um show de talentos, é a síntese perfeita desse embate entre participantes e o próprio programa. Frimes faz uma das melhores apresentações e acaba entre as piores por causa da maquiagem, sob as reclamações de que ficou um tanto exagerada --porque todos nós sabemos que não há nada mais natural do que uma drag queen.
Frimes, inclusive, é responsável por tiradas espetaculares como "de salto alto eu fico mais perto de Jesus" ou "nunca confie em um gay de calcinha". Perder uma personalidade dessa na primeira leva de episódios ia ser a pá de cal. Uma das piores decisões do audiovisual brasileiro desde que Assis Chateaubriand (1892-1968) ligou a primeira TV do país.
DesiRée Beck também tem um dos melhores momentos do reality quando faz uma piada sobre pacto diabólico na frente de Xuxa Meneghel. A cara de pau seria o suficiente para fazê-la "soberana" da caravana, mas por pouco ela não é eliminada.
A impressão que fica para o telespectador é que o elenco sabia exatamente qual era a real do reality, mas a direção não. Essa questão fica ainda mais clara no quão apagada Xuxa está nos episódios, mesmo aparecendo com um figurino com uma gola no formato dos Arcos da Lapa e um brinco do Bondinho de Santa Teresa, no Rio de Janeiro.
O pior é que a apresentadora sabe muito bem mesclar a própria personalidade com um formato a ser seguido, como fez no Dancing Brasil (2017-2019). Em Caravana das Drags, o público esperava uma versão ainda mais livre, leve e solta da loira no Planeta Xuxa (1997-2022) --mas ganhou a reunião de pais do colégio de Sasha Meneghel.
Ikaro Kadoshi consegue contornar essa direção correta demais melhor do que Xuxa. O artista mescla bem a presença que é exigida dos apresentadores, até pelo próprio porte e elegância naturais, mas é mais livre para rir de si mesmo --e, consequentemente, também do formato e das participantes.
A experiência com a arte drag faz com que Ikaro dê toques certeiros de deboche e irreverência em diversos momentos, capaz de fazer uma piada infame e, em seguida, dar uma bronca de Chandelly Kidman por uma caracterização com estereótipos absolutamente datados.
Kadoshi quebra um pouco a necessidade de Caravana das Drags se explicar a todo o tempo, como se isso fosse deixar o programa mais fácil ou acessível para um público mais amplo. É uma figura chique e, ao mesmo tempo, absurdamente descolada. Difícil de explicar, mas tão maravilhoso quanto encontrar Costanza Pascolato cantando Tame Impala num karaokê da Liberdade.
Caravana das Drags perde muito com essa tentativa de se "traduzir" para o público maior, com uma óbvia necessidade de alcançar mais espectadores e, assim, tornar-se um conteúdo rentável. O reality ganharia muito mais abraçando o próprio caos ou mesmo as próprias idiossincrasias.
A escolha de jurados parece mais para ampliar o leque de visibilidade, como uma espécie de chancelaria, do que para agregar à dinâmica. Nicole Bahls como convidada do primeiro episódio para avaliar o "bate cabelo" das participantes serviu apenas como "grife", uma celebridade para validar o apelo. Em termos narrativos ou da competição, foi um completo vazio.
Caravana seria muito mais interessante se trouxesse Márcia Pantera, drag que é precursora da técnica, na bancada. Ela entrando de moto no palco como em seus shows já seria de um impacto muito mais interessante do que Nicole repetindo um meme tão ou mais nichado junto ao público LGBTQIA+.
A presença de artistas como Márcia também ajudaria a abrasileirar o olhar de um público que começou a olhar melhor para a cultura drag pela ótica norte-americana com Drag Race. O Brasil tem uma formação bastante distinta dos EUA e, às vezes, um pouco de didatismo até cairia bem --para não ficar parecendo que o "bate cabelo" simplesmente já estava aqui com a Mata Atlântica.
Gaia do Brasil, por exemplo, exemplifica como esse didatismo pode ser bem explorado. Ela conseguiu levantar a discussão sobre gênero no primeiro episódio ao falar da própria experiência, de forma até um tanto educativa, mas muito mais natural do que quando as drags foram colocadas frente a frente para um debate.
Caravana poderia explorar melhor o carisma do elenco em vez de simplesmente se apegar a um roteiro. Até porque ninguém entendeu a decisão de apresentar as participantes mais no segundo episódio do que no primeiro –o que já deu margem para DesiRée, Gaia, Robytt Moon e Frimes simplesmente roubarem a cena.
A atração realmente se deu bem nesse grupo de competidores que vai muito além do que é exigido. A expectativa é que esse apego ao formato possa diminuir nos próximos episódios, até para dar chance ao reality de rir de si mesmo. A eliminação, por exemplo, até uma boa sacada da drag queen que ficou sem crédito no bilhete único para embarcar no ônibus da caravana.
A sensação ao fim dos três episódios é de que falta mais, o over, aquilo que fascina na arte drag. Ajustes obviamente são necessários para uma segunda temporada, mas o caminho já foi aberto. É uma questão de correção de rota e novamente um bom trabalho da produção de elenco.
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