ÀS SEIS E ÀS NOVE
REPRODUÇÃO/TV GLOBO
Irene (Gloria Pires), de Terra e Paixão, e Gilda (Mariana Ximenes), de Amor Perfeito; ambas foram prostitutas
As prostitutas estão entre os perfis de personagem mais repetidos na dramaturgia brasileira. Só na Globo, foram cerca de 50 papéis de profissionais do sexo desde a década de 1970 --ocupando o lugar de protagonistas e coadjuvantes, mas, principalmente, de vilãs. Da icônica Nazaré Tedesco (Renata Sorrah), de Senhora do Destino (2004), a maquiavélica Sophia (Marieta Severo), de O Outro Lado do Paraíso (2018), é fácil encontrar exemplos que relacionam as garotas de programa à maldade e à degeneração.
Isso ainda se mantém --vide Amor Perfeito, atual novela das seis, e Terra e Paixão, trama das nove, cujas vilãs compartilham um passado na profissão mais antiga do mundo. O irônico é que as mocinhas se transformaram muito nesse período.
Aliás, a emissora até evita nomear as protagonistas de novelas de "mocinhas". É uma tentativa de não relacionar essas personagens a um lugar de "bela, recatada e do lar" que não cabe mais às mulheres de hoje. Mas qual é o sentido disso, quando as mulheres que lidam abertamente com sua sexualidade são colocadas no extremo oposto da bondade?
É o que analisa Carolina Bonomi, cientista política, educadora social e pesquisadora de trabalho sexual. "As novelas têm mostrado mais as contradições da heroína. Mas a gente precisa completar essa ideia. Continua parecendo que o que separa mulheres boas e mulheres más é quem exerce sua sexualidade. A prostituta fica nesse lugar porque ela é vista como corrompida, porque a sexualidade é colocada como uma régua moral [no universo da novela]", define ela ao Notícias da TV.
Isso explica a quantidade exorbitante de vilãs prostitutas, especialmente nos últimos tempos. Deodora (Debora Bloch), de Mar do Sertão (2022); Gilda (Mariana Ximenes), de Amor Perfeito; Irene (Gloria Pires), de Terra e Paixão: todas corroboram com essa tese. Mesmo quem trabalha com sexo mas não é propriamente vilã, caso de Cândida (Susana Vieira) e Anely (Tatá Werneck), está envolvida com atos questionáveis, como chantagem e engano.
"É uma coisa meio que da história social da prostituição do Brasil", define a pesquisadora. "As leis sempre trataram as trabalhadoras sexuais como uma classe perigosa, porque o entorno da prostituição é considerado ilegal. E também teve a questão da psiquiatria, que, entre o final do século 19 e o início do século 20, diagnosticava essas mulheres como pessoas degeneradas que tinham sofrido algum estupro. Pensavam: 'como pode essas mulheres transarem por dinheiro?'. Acabava que faziam essa associação", completa.
Esses dois fatores desembocam na ideia de que, se a mulher faz sexo por dinheiro, ela é capaz de tudo. Ela seria uma pessoa gananciosa, sem escrúpulos, maldosa. Boa parte dos autores se baseia nessa visão e constrói suas personagens com base nisso --o que perpetua esse rótulo ainda mais.
Mas não é bem assim. "Às vezes, essas mulheres só estão querendo construir suas vidas. Então, não se faz tudo por dinheiro, né? Porque o trabalho sexual também tem vários acordos, várias questões", defende Carolina.
Nas poucas vezes em que as novelas saíram da ótica de prostituta-vilã, a sociedade não lidou muito bem. Com Laços de Família (2000), o autor Manoel Carlos foi rechaçado por sua Capitu (Giovanna Antonelli), uma garota de programa de classe média alta, longe de vilanias ou de envolvimento com qualquer ilegalidade. Ele, inclusive, se defendeu das críticas: "Se fosse uma prostituta de beira de estrada, não se importariam. É o velho preconceito de quem aceita caricaturas de gays nas novelas, mas não gays dignos, normais", disse, à revista Época.
Houve até quem condenasse o autor por supostamente incentivar as mulheres a entrarem para o trabalho sexual. Carolina discorda dessa teoria: "Não tem pesquisas ou dados sobre isso, é uma falácia. Eu acho que é o contrário, que tem muitos personagens que contribuem para a criminalização da prostituição, para que as pessoas tenham preconceito, para que tratem essas pessoas mal na rua, sabe?".
Só uma personagem fenômeno furou bolhas, conquistou o público conservador e agradou até as próprias prostitutas: a memorável Bebel (Camila Pitanga), de Paraíso Tropical (2007). Ali, Gilberto Braga (1945-2021) foi perspicaz. Ela era gananciosa, sim, e tinha vontade de crescer na vida. Mas mantinha seu próprio código moral, mesmo que deturpado.
O romance com Olavo (Wagner Moura) contribuiu para a aceitação do público, e o fato de a atriz ter convivido com prostitutas durante um tempo, trazendo opiniões e vivências delas nos relatos da personagem, trouxe ainda mais veracidade ao papel.
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Camila Pitanga como Bebel em Paraíso Tropical
Mas outras questões interferem nesse sucesso. Querendo ou não, Bebel tinha um visual estereotipado; era uma personagem humorística e trabalhava no "calçadão", espaço visto como inferior. A coisa muda de figura quando a prostituta é uma moça de classe média alta, que frequenta lugares chiques e usa roupas comportadas, como a Capitu de Maneco.
Ambas as personagens se encontram num ponto: a identificação. "Não está na testa [das personagens] se elas são prostitutas ou não, mas sim que elas exercem sua sexualidade com mais força, que não têm medo do tabu. As pessoas também se sentem mal pelo preconceito que as personagens sofrem, e existe um efeito catártico quando elas dão a volta por cima", analisa Carolina.
De fato: Bebel sofreu todo tipo de humilhação, mas deu a volta por cima e enriqueceu no final da trama. Capitu, por sua vez, penou com Orlando (Henrique Pagnoncelli), um cliente que se transformou em perseguidor, além das chantagens do ex-namorado, Maurinho (Luiz Nicolau). Infelizmente, essa é uma questão quase que inerente às mulheres --vide a enorme identificação com Maria Bruaca (Isabel Teixeira), de Pantanal (2022).
O problema é que, ao focar tanto nos "contras" do trabalho sexual, os autores podem se esbarrar em outro estereótipo, o da prostituta como vítima. É aquele caso em que ela foi parar na profissão por causa das circunstâncias e precisa de um salvador, normalmente um homem, para tirá-la dali. A história é tão recorrente que já tem até um nome: Cinderela do Sexo.
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Giovanna Antonelli como Capitu em Laços de Família
"É sempre o amor como uma forma de redenção. A mulher deixa essa vida para ficar dentro de uma casa e vira uma mulher 'digna'. É horrível, né? Ela abdica do trabalho remunerado pelo amor, e acaba ficando com trabalhos não pagos, como o doméstico e o sexual", determina a especialista.
Ela defende que a paixão não deveria eliminar o trabalho: "Muitas trabalhadoras sexuais têm a sua vida e conseguem trabalhar. Há mulheres que são casadas e que mantêm [a profissão]. Existem várias discussões sobre amor, ciúme, família, que poderiam ser melhor abordadas [nas novelas]."
Em defesa dos autores, vale citar que boa parte das narrativas das novelas é baseada na polaridade. Afinal, são produtos que precisam ser entendidos com certa facilidade, obras que são consumidas com um nível menor de atenção do que um filme, por exemplo. É prático e popular contrastar bem e mal, mulheres castas e "promíscuas", personagens abnegados e gananciosos. Walcyr Carrasco é um mestre nisso.
Também há um fascínio geral pela figura da prostituta, que parece atrair o público para a frente da TV. "As pessoas não gostam de falar abertamente sobre sexualidade. Esse é o lugar da prostituta --elas acabam sendo um pouco as educadoras sexuais, e isso chama a atenção", explica a cientista política.
O fato de elas usarem o corpo como instrumento de poder também causa uma certa admiração. Não por acaso, os visuais desse tipo de vilã em específico é bem mais trabalhado: vestidos justos, decotes marcantes, batom vermelho. Um forte contraste com a mocinha pouco vaidosa.
Claro, o grande problema é relacionar a ganância à prostituição. Também é possível inverter a ordem clássica, como em Tieta (1989), no qual a personagem liberta sexualmente é a heroína, e a mulher supostamente moralista é a vilã. Mas, em tempos de audiência escassa, é seguro repetir a fórmula que sempre deu certo, ou cortar relacionamentos homoafetivos. Seguro, mas não algo que acompanha a trajetória de discussões e merchandising social das telenovelas.
"A gente devia estar falando do dia a dia de fato dessas pessoas, que não é dentro desse estereótipo produzido pelo senso comum, né? E a gente sabe que as mídias sociais, a televisão, têm bastante influência nisso", finaliza Carolina.
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