ANÁLISE
Fábio Rocha e Estevam Avellar/TV Globo
Carlos Henrique Schroder, ex-diretor-geral da Globo, e Marcius Melhem, que comandou o núcleo de humor
As denúncias de assédio sexual contra o ator e diretor Marcius Melhem, narradas com detalhes sórdidos em grande reportagem da revista Piauí deste mês, dão um tom melancólico ao final da gestão de Carlos Henrique Schroder, que de 2013 até o final do ano passado foi o todo-poderoso da TV Globo. Schroder, justamente o executivo que mais "desconstruiu" a maior rede de televisão do país, sai de cena no início de 2021 manchado por um escândalo abafado em nome do sigilo corporativo (e corporativista).
É leviano apontar o dedo para a cúpula da Globo e afirmar que ela foi omissa diante de graves acusações contra um deles, já que Melhem era diretor do núcleo de Humor da emissora, ou seja, homem de confiança do próprio Schroder.
Há que se ponderar que Melhem nunca admitiu ter cometido assédio sexual e que vem apontando vingança na narrativa da atriz Dani Calabresa, para quem o humorista teria mostrado o pênis durante uma festa de comemoração do centésimo episódio do programa Zorra, em novembro de 2017. No discurso de Melhem, Dani não assimilou a reprovação de um projeto seu, no final de 2019, e resolveu trazer à tona um episódio ocorrido dois anos depois.
Mas não foi só Dani Calabresa. Depois da atriz, a Globo recebeu outras cinco denúncias de importunação sexual contra Melhem e outras tantas de assédio moral. Mesmo assim a emissora nunca reconheceu publicamente que o comediante deixou a emissora, em agosto, pela porta dos fundos. Pelo contrário.
Diferentemente do que ocorreu com o ator José Mayer, que virou notícia em seus telejornais em 2017 por assediar uma figurinista, a Globo nunca associou a saída do talentoso Melhem às denúncias de assédio sexual. Se ele foi demitido por isso, suas vítimas mereciam saber que houve alguma justiça.
Mas não: em março, quando as denúncias de Dani Calabresa à área de compliance da empresa tornaram insustentável a permanência do chefe do departamento de Humor, a Globo não desmentiu a informação de que Melhem teria sido inocentado após investigação interna.
Em nota à imprensa, a emissora informou que Melhem estava deixando suas funções executivas e se afastando das criativas, durante quatro meses, para tratar de assuntos pessoais (acompanhar o tratamento médico de uma filha nos Estados Unidos).
Em agosto, quando a emissora já tinha recebido pelo menos seis denúncias de assédio sexual, o contrato do humorista foi rescindido. A nota oficial de novo passava pano para Melhem. Dizia o comunicado que a "parceria de 17 anos de sucessos" se encerrava em "comum acordo". Dava a entender que Melhem estava saindo dentro de uma política de redução de despesas.
"Como todos sabem, a Globo tem tomado uma série de iniciativas para se preparar para os desafios do futuro e, com isso, adotado novas dinâmicas de parceria com atores e criadores em suas múltiplas plataformas", dizia a nota.
Na última sexta-feira (4), na esteira da corajosa reportagem de João Batista Jr. na revista Piauí, a Globo perdeu outra oportunidade de contar a dura verdade. Eis a íntegra da nova nota oficial:
"A Globo não comenta questões de compliance, mas reafirma que todo relato de assédio, moral ou sexual, é apurado criteriosamente assim que a empresa toma conhecimento. A Globo não tolera comportamentos abusivos em suas equipes e incentiva que qualquer abuso seja denunciado. Neste sentido, mantém um canal aberto para denúncias de violação às regras do Código de Ética do Grupo Globo. Por esse código, assumimos o compromisso de sigilo do processo, assim como o de investigar, não fazer comentários sobre as apurações e tomar as medidas cabíveis, que podem ir de uma advertência até o desligamento do colaborador. Mesmo nas hipóteses de desligamento, as razões de compliance não são tornadas públicas.
Somos muito criteriosos para que os estilos de gestão estejam adequados aos comportamentos e posturas que a Globo quer incentivar e para que as medidas adotadas estejam de acordo com o que foi apurado. Não foi diferente nesse caso. O acolhimento e a empatia com quem relata situações de violação do Código de Ética são pontos essenciais do programa de compliance da empresa.
Isso não quer dizer que os processos de compliance sejam estáticos. Ao contrário. Eles evoluem constantemente para acompanhar as discussões da sociedade. As práticas e as avaliações são revistas o tempo inteiro, assim como são propostas e acolhidas sugestões de melhoria nos mecanismos de comunicação interna. A própria sociedade está se transformando e a empresa acompanha esse processo."
Ou seja, oficialmente, Marcius Melhem nunca foi demitido pela Globo por mostrar o pênis para uma colega de trabalho, ou qualquer ato que o desabone.
É inegável que a Globo falhou nesse caso. A própria emissora reconhece que está aprendendo. Os fatos mostram que ela protegeu (e continua protegendo) um profissional acusado de desvio ético e que compensou a vítima com um quadro no finado Se Joga e um programa no GNT.
Carlos Henrique Schroder, o chefe de Marcius Melhem, não está deixando a Globo por causa da maneira com que conduziu o caso. O escândalo, contudo, chamusca sua reputação de executivo que modernizou a Globo, renovou o quadro de autores de novelas e deu a seu Jornalismo um prestígio que nunca teve --em parte provocado pelo bolsonarismo.
Schroder não inventou o "teste do sofá", é verdade, porém a Globo sob seu comando continuou sendo uma empresa machista e tóxica. Apesar de ter instituído uma área de compliance (que já recebeu mais de 4 mil denúncias) e punido casos de racismo e assédio, a Globo de Schroder não deu às vítimas o reconhecimento público que elas merecem. Não precisava dizer que Melhem as assediou (até porque, salvo engano, não existem provas materiais). Apenas falar com todas as letras que ele deixou a emissora por causa das denúncias.
Quase oito horas após a publicação deste texto, a Globo enviou a nota que segue abaixo, em que aponta que a responsabilidade pelo compliance compete ao Grupo Globo, o que é verdade. Sobre as denúncias de Dani Calabresa e o motivo da saída de Marcus Melhem, nenhuma palavara:
"A Globo repudia com veemência a leitura dos fatos feita na análise intitulada “Escândalo abafado de Marcius Melhem mancha currículo de chefão da Globo” e mais ainda as ilações levianas feitas sobre Carlos Henrique Schroder, um profissional sério e com uma longa história de realizações nessa empresa, sempre ancorada em ética, talento e respeito.
A análise se baseia em informações incorretas, tais como a responsabilidade pelo Compliance. A área de compliance foi implantada pelo Grupo Globo, e não pela TV Globo, há cinco anos e, desde então, tem uma atuação firme e transparente. Assim como é firme e transparente o compromisso inegociável de apurar criteriosamente todo relato de assédio, moral ou sexual, assim que tomamos conhecimento.
A Globo não comenta questões de compliance não por 'proteger profissionais acusados de desvio ético', como sugere o texto, mas por ter assumido com todos os seus colaboradores um compromisso de sigilo do processo, que resguarda a investigação dos fatos, denunciantes, denunciados e testemunhas.
Por isso, não faz comentários sobre as apurações e sobre as medidas cabíveis, que podem ir de uma advertência até o desligamento do colaborador. Mesmo nas hipóteses de desligamento, as razões de compliance não são tornadas públicas."
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