CADÊ O LUTO?
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Luísa (Thaís Melchior) chora após descobrir aborto; tema foi pouco abordado em Poliana Moça
Luísa (Thaís Melchior) e Marcelo (Murilo Cezar) viveram pouco o luto após passarem por um aborto em Poliana Moça. Foi uma oportunidade perdida de instruir o público-alvo da trama. Se o roteiro tivesse se debruçado na história com todos os cuidados necessários, poderia representar e amparar pessoas que passaram por dores semelhantes. Em vez disso, a situação foi superada com um punhado de frases de conforto genéricas.
Para especialistas, o Jogo do Contente de Poliana (Sophia Valverde) pode mais atrapalhar do que ajudar. Embora as tentativas de consolo sejam válidas, elas inibem que a administradora expresse sua dor. Sem manifestar o sofrimento, o indivíduo não consegue enfrentar o luto de maneira saudável.
"A gente sabe, dentro da Teoria do Luto, que a evitação é um fator de risco para um Transtorno de Luto Prolongado", explica Erica Quintans, psicóloga e autora de uma das poucas pesquisas sobre luto masculino na perda gestacional feitas no Brasil, ao Notícias da TV. A doença psiquiátrica é diagnosticada quando sentimentos relacionados a perda --como tristeza, negação, frieza, raiva ou culpa-- atrapalham o cotidiano da pessoa.
Erica se especializou no luto masculino porque, socialmente, os homens são duplamente impedidos de sofrer. Em primeiro lugar, o luto gestacional --ou seja, pela morte de um bebê ainda no útero-- é considerado um luto não reconhecido.
O termo diz respeito a maneiras de pesar que não têm validação social. É o caso do aborto, da morte de animais de estimação, do término de relacionamentos e de aposentadorias, por exemplo.
Além disso, os homens lidam com uma cultura machista que não os estimula a liberar seus sentimentos. No aborto, isso atinge uma proporção ainda maior.
"É como se, por não ter gestado, o homem não tivesse direito a sentir aquela perda. Na verdade, os homens também têm essa experiência de rompimento, de tristeza, de raiva, de culpa, de questionamento, de sofrimento a partir dessa vivência", explica a profissional.
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Poliana conforta Luísa após aborto
Em entrevista ao Notícias da TV, o ator Murilo Cezar mencionou que seu personagem está reprimindo os próprios sentimentos para dar apoio à mulher.
"É o grande sonho do Marcelo, mas ele sabe de toda a delicadeza que a gravidez é para a mulher. É tudo no corpo dela. A gente, como homem, fica vendo de fora. [A perda do bebê] É muito dolorosa, mas o Marcelo se preocupa em apoiar a Luísa 100%", disse, na ocasião.
Falas como essas são comuns entre homens enlutados por perdas gestacionais. "Muitas vezes, o homem se silencia. Isso aparece por meio de sintomas como aumento de pressão, aumento do uso de álcool e drogas ou explosões de raiva", lista a psicóloga.
Mas essas consequências podem ser evitadas. Basta fugir da chamada "positividade tóxica" --reproduzida, muitas vezes, nas ações dos personagens. Na cena em que Poliana conforta a tia, ela menciona ser só um "momento difícil" e afirma que "aquela não era a hora certa". São conselhos genéricos, oferecidos para uma frustração qualquer.
"A mulher começa a ter vergonha de falar sobre o assunto, vergonha de chorar, medo do que as pessoas estão pensando, de que as pessoas a achem fraca. Em suma, a mulher não entra em contato com o sofrimento dela e não assume que essa perda foi muito grande", conta Anaí Ramos Vieira, psicóloga especialista na área materno-infantil, ao Notícias da TV.
Tampouco os conselhos de João (Igor Jansen) para Marcelo foram certeiros. O cearense errou feio ao dizer que "logo mais o Marcelinho Júnior está na área". A fala reforça que um eventual novo bebê substituirá aquele que morreu.
"É importante individualizar a experiência. Nenhum filho substitui o outro, seja morto ou não. A experiência vivida desde o desejo até a morte desse filho é única e precisa ser considerada. Da mesma forma que uma nova gestação carregará outra gama de sentimentos", afirma Priscila Morozetti, psicóloga especialista em teoria, pesquisa e intervenções em situações de luto.
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João interrompe aula para consolar Marcelo
Portanto, para ajudar um enlutado, o principal é ser um bom ouvinte. "O conforto é estar presente por meio de uma escuta amorosa e disponível, um colo que aconchega. Pode ser a resolução das tarefas domésticas, como realizar as compras, fazer uma comida, é muito mais efetivo e de valor nesse momento", explica a especialista.
Apesar das falas problemáticas, é importante ressaltar que Poliana se ofereceu para ouvir a tia. Também acertou ao deixar claro que a mulher não tinha culpa pelo acontecido. "Muitas vezes a sociedade lida com o aborto como uma falha da mulher, e isso não é real, não existe. Colocar isso [na fala da personagem] ajuda a desmistificar esta ideia", declara Anaí.
Quando Luísa e Marcelo receberam a notícia do aborto, fazia menos de uma semana que eles haviam descoberto estar esperando um bebê. A administradora foi vítima de uma gravidez anembrionária, quando o embrião não se desenvolve.
"Normalmente, a condição é associada à alteração cromossômica no embrião. Isso acontece porque o óvulo estava com defeito. Aí, há a formação do saco gestacional, mas não do embrião. Não é frequente, mas ocorre em 10% dos abortos", afirma Geraldo Caldeira, ginecologista e obstetra membro da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia).
Os abortos espontâneos, aliás, estão longe de ser raros. Uma em cada 10 gestações no mundo não vai para a frente, e 11% das mulheres enfrentam uma gravidez interrompida pelo menos uma vez na vida, segundo dados de relatório publicado na revista científica The Lancet em abril de 2021. Os pesquisadores, no entanto, acreditam que o balanço real seja "substancialmente maior", devido às subnotificações.
No caso da gravidez anembrionária, o principal fator de risco é a idade materna. Mulheres acima de 37 anos são as mais afetadas. "Os óvulos vão ficando mais velhos, perdem a qualidade, e com isso têm mais chance de produzir embriões alterados geneticamente", completa o obstetra.
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Médico dá notícia trágica a Marcelo e Luísa
A condição é percebida no primeiro exame da paciente. Com isso, os pais descobrem o aborto nas primeiras semanas após a descoberta. O pouco tempo, no entanto, não diminui o sofrimento. Como afirma Erica:
A ideia de maternidade ou paternidade vem muito antes da concepção. Quando as crianças brincam de boneca, por exemplo, a gente fala que é um bebê fantasiado. É o início de se colocar nesse lugar, de viver esse sonho. Quando acontece a perda gestacional, também é essa perda que acontece --dessas fantasias, dessas imagens.
"Ou seja: o fato de ter ou não um embrião, de ser uma gravidez de muitos ou poucos meses, é menos relevante. O que vai dizer o tamanho do luto, na verdade, é o tamanho do afeto, do desejo, das idealizações que foram feitas em relação a esse bebê", completa.
Dias após o aborto, a protagonista seguiu o conselho de Nanci (Rafaela Ferreira) e decidiu tentar engravidar por meio da inseminação artificial. Contudo, a mulher poderia continuar apostando no método tradicional. De acordo com o ginecologista Geraldo Caldeira, bastaria esperar dois meses e ela já poderia engravidar de novo.
Essa urgência pode ser interpretada de duas maneiras. De certa forma, a nova tentativa dá esperança ao casal e ao público. É uma forma de mostrar que, independentemente das adversidades, eles continuarão determinados em realizar o sonho. "Os personagens trarão estímulo, essa força de continuar."
Fora da ficção, a situação é mais complicada. Priscilla explica:
Muitas vezes, a urgência em engravidar vem para para aplacar o medo da impossibilidade de ter um novo bebê, e também para se distanciar das dores que aquela perda provoca. Isso poderá trazer consequências futuras, como sentir dificuldade de se vincular ao novo filho ou um zelo excessivo.
Outra questão é que o aborto, de uma forma ou de outra, afeta a relação entre o casal. O autor Kenneth Doka, em Grieving Beyond Gender: Understanding the Ways Men and Women Mourn (Luto Além do Gênero: Entendendo as Formas de Luto de Homens e Mulheres, em tradução literal), relatou diferenças na maneira de lidar com a morte.
Culturalmente, o homem passa a executar uma obra, uma tarefa, para aplacar a dor. As mulheres, por sua vez, dão vazão as emoções. As formas de lidar com a perda se desencontram, e a situação pode se tornar tão insustentável que resulta em uma separação.
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Luísa decide fazer inseminação artificial
"Muitas vezes o que acontece é que os homens são lidos como insensíveis, que não estão sentindo aquela perda. Já as mulheres podem ser vistas como 'só choram', 'só falam disso', 'não conseguem seguir em frente'", conta Erica.
Outros casais, contudo, buscam consolo justamente um no outro --caso de Luísa e Marcelo. Entre eles, conseguem chorar e colocar os sentimentos para fora. Juntos, também exercem um dos principais meios para lidar com a perda: rituais de despedida.
"Tem casais que soltam balões, acendem velas, escrevem cartas, plantam árvores, qualquer homenagem que seja, desde que faça sentido para aquele casal, desde que exista a possibilidade de homenagear o filho e concretizar aquela perda", completa Érica.
Poliana Moça é exibida de segunda a sexta-feira, às 20h30, no SBT. A novela dá continuidade à saga de Poliana, menina que usa o Jogo do Contente para enxergar o lado bom da vida. A infância da personagem foi abordada no folhetim As Aventuras de Poliana, que a emissora colocou no ar em 2018.
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