PASSADOS-PRESENTES
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Lucy (Ella Purnell) de Fallout, Taylor Swift no clipe de Fortnight, e Bella (Emma Stone) em Pobres Criaturas
O sucesso quase inesperado da série Fallout reforça que o passado nunca esteve tão presente na cultura popular. A adaptação do Prime Video estreou mais de 25 anos depois do primeiro jogo da franquia, lançado exclusivamente para PCs em 1997. O atraso, porém, beneficia diretamente a história de Lucy (Ella Purnell) --com imagens que ecoam do novo clipe de Taylor Swift até Pobres Criaturas (2023).
A volta ao passado se tornou quase uma obsessão nos últimos 20 anos, e o jornalista britânico Simon Reynolds chegou a cunhar o termo "retromania". O autor apontou que a necessidade de rever a própria história é muito mais do que o sinal de uma possível crise criativa --em que haveria quase ou nenhum espaço para o desenvolvimento de novos mundos, ao menos ficcionalmente.
Mais do que rever o passado, a cultura pop começou também a reescrevê-lo com mais força nos últimos anos. O passado deixa o lugar de referência para ocupar o lugar do próprio futuro --exatamente como acontece com o retrofuturismo de Fallout.
Os próprios jogos existem desde 1997, mas se tornaram um fenômeno de maior extensão recentemente. O desalento de seus protagonistas com o futuro, aniquilado por uma guerra nuclear entre China e Estados Unidos em 2077, encontra uma espécie de eco no nosso atual imaginário.
Uma parte da população, sobretudo no Norte Global, já não vê tanta esperança em um futuro para o planeta com o aquecimento global. Jovens portugueses e senhoras suíças até se uniram para processar seus respectivos países por não impedir a criação desse "ambiente inóspito" em cortes europeias de Direitos Humanos.
O processo de desconstrução de Lucy de um "futuro perfeito" assim que sai do seu refúgio nuclear encontra paralelo com a desilusão crescente do próprio telespectador. Em vez de bombas nucleares, fenômenos climáticos cada vez mais fora de controle --das chuvas no Sul às ondas de calor no Sudeste.
Fallout não só encontrou uma realidade em que pudessem ser traçados diversos paralelos como também se aproveita de um momento em que há uma imagem em comum circulando pela cultura popular. A ginoide Maschinenmensch (Brigitte Helm) de Metrópolis (1927), um dos clássicos do expressionismo alemão, tem aparecido recorrentemente em produtos audiovisuais.
Pobres Criaturas, por exemplo, faz uma referência direta ao filme de Fritz Lang na cena em que Bella (Emma Stone) volta à vida. Taylor Swift também recupera o mesmo trecho no clipe de Fortnight, com o rapper Post Malone.
Lucy ainda faz parte desse grupo de androides, mas de uma forma um pouco mais discreta. Ela não é um autômato como a Maschinenmensch, mas um ciborgue --em que o Pip-Boy, supercomputador que carrega no pulso, funciona quase como uma prótese.
A antropóloga argentina Paula Sibilia explica que a ideia do ciborgue também é cada vez mais recorrente, com a mistura do corpo biológico com inúmeras "próteses" que usamos no dia a dia. Ela exemplifica do marcapasso às lentes de contato, mas não é difícil chegar até a discussão do superchip que Elon Musk quer instalar no cérebro humano.
Pobres Criaturas e Fallout têm em comum a característica de seus futuros distópicos emularem o passado das sociedades europeias no final do século 19 e no início do 20.
Há obviamente críticas nas duas produções sobre o presente, mas é curioso perceber como a introdução desses novos julgamento acaba ofuscando ou até mesmo apagando as ideias originais a que se apegam --de Metrópolis a Frankenstein (1818), de Mary Shelley (1797-1851).
Fallout questiona até que ponto a humanidade foi capaz de entregar a própria liberdade em troca do conforto oferecido por grandes corporações. A VaultTec, que construiu e usou os refúgios para experimentos antiéticos, é meio que a "prima má" da farmácia que pede o CPF em troca de descontos.
Porém, para fazer essa crítica, Fallout acaba apagando muitas questões que haviam em suas referências originais, como a luta de classe e a alternativa ao capitalismo de Metrópolis.
O professor alemão Andreas Huyssen vai chamar esse movimento de "cultura do passado presente". Em linhas gerais, o desencanto com a promessa de um futuro glorioso pela modernidade fez com que a Europa e os Estados Unidos se voltassem para trás --criando uma cultura da memória que bloquearia qualquer imaginação de futuros alternativos.
Fallout, por exemplo, devasta o mundo com bombas atômicas e mantém estruturas que são criações humanas como se fossem superestruturas ancestrais. Uma delas é o conceito moderno de dinheiro, em que as tampinhas de garrafa funcionam como moedas --e o lastro de ouro é substituído pelo de água potável.
O crítico britânico Mark Fisher (1968-2017) chama essa tendência de realismo capitalista, em que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o do próprio capitalismo.
O problema é que a própria referência do passado também vai sendo aos poucos reescrita, como em Fallout ou em Pobres Criaturas. Vai diretamente ao encontro da imagem que o filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995) descreve como o ser humano pós-contemporâneo. Uma cobra no deserto, rumo ao nada e com o vento desfazendo os seus rastros. Ou seja, sem futuro. E, agora, sem passado.
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