NÃO É COMO A VIDA É
Reprodução/TV Globo
Valéria (Bia Arantes) beija Camila (Anaju Dorigon) no penúltimo capítulo de Órfãos da Terra, da Globo
MÁRCIA PEREIRA
Publicado em 6/1/2020 - 5h25
A cada ano mais papéis de homossexuais e transexuais estão presentes nas novelas. O aumento é um avanço. Porém, as histórias não são contadas de maneira real e ainda tem caso de beijo censurado. Muitos personagens são dessexualizados, vivem romances platônicos ou com raros gestos de carinho. Isso acontece porque os autores identificaram a necessidade de primeiramente envolver e conquistar o público para ter aceitação.
Quase cinco anos após o público rejeitar Babilônia (2015), principalmente por mostrar um beijo entre duas senhoras na estreia, o medo de o telespectador voltar a ter uma reação espantosa como a que aconteceu na época ainda está presente.
Por isso, grande parte dos novelistas opta por só desenvolver um romance homoafetivo na reta final de uma trama, deixando o beijo do casal gay ou trans para os últimos capítulos, como aconteceu em Órfãos da Terra e A Dona do Pedaço.
Mesmo assim, especialistas afirmam que existe um progresso em andamento. "É uma construção lenta. Avança e regride um pouquinho", diz Daniela Ortega, doutoranda em comunicação e pesquisadora de ficção televisiva da Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona (Espanha).
Mauro Alencar, pós-doutorado pelo Centro de Estudos de Comunicação e Cultura da Universidade Católica Portuguesa, inclusive, contesta que as novelas ignorem a realidade no caso da diversidade sexual.
"Há que se louvar a frequência crescente com a qual a Globo aborda essa temática e em todos os horários, respeitando a maneira adequada de cada faixa horária e seu respectivo público", declara Alencar.
Para Daniela, o tema pode ser comparado à questão da mulher. "A emancipação feminina ainda é um caminho que está sendo percorrido. Que mocinha termina feliz sozinha? O casamento ainda é uma recompensa para a mulher. Com os gays e trans, esse caminho também vem sendo percorrido e é ainda mais recente", explica.
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Romance de Britney (Glamour Garcia) e Abel (Pedro Carvalho) só teve beijo após casamento
Os autores estão em constante busca de caminhos para quebrar o preconceito. A personagem de Glamour Garcia em A Dona do Pedaço foi importante, apesar de Britney não ter relação carnal em seu romance com Abel (Pedro Carvalho).
"Tem muitos problemas para serem levantados, mas que envolvem a sociedade, não é só no campo da produção audiovisual", aponta a doutoranda.
Alencar também cita que derrubar preconceitos enraizados desde a formação de um povo não é uma tarefa nada fácil e que as novelas da Globo contribuem de "maneira decisiva para o avanço social por meio do desenvolvimento artístico".
O que se avalia é que os personagens não são colocados em circunstâncias reais para que a novela consiga que a audiência se afeiçoe a eles. A atriz Glamour Garcia fala que isso deu certo, no caso de sua "mocinha". "Fui extremamente tão bem aceita que até eu fiquei impressionada", conta a loira.
"Toda essa repercussão extremamente positiva da Britney foi emocionante. O público teve carinho e, acima de tudo, teve pela primeira vez a humanidade de entender que o amor está nas pessoas", discursa Glamour, que foi a primeira mulher trans a ganhar um troféu no Melhores do Ano do Domingão do Faustão.
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Maria Clara Spinelli fez Mira em A Força do Querer (2017) e realizou sonho com a personagem
É muito bom tirar transexuais de contextos como a prostituição, por exemplo, só que abordagens repetitivas podem criar outro estigma para atores transexuais. A atriz Maria Clara Spinelli, que é uma mulher trans, explica que todo mundo só a chama para fazer personagens transgêneros. Por isso ela está longe da TV, pois não pode desenvolver uma carreira sempre fazendo o mesmo papel.
"Isso é muito triste porque toda essa geração que está vindo, está empolgada, vai fazer mais um ou dois papéis de transgêneros. E daí a indústria quer outras caras novas para fazerem esses mesmos personagens, e você é descartada", lamenta.
A atriz fez uma mulher cisgênero em A Força do Querer (2017), novela que desenvolveu didaticamente a questão do transgênero com o personagem Ivan (Carol Duarte). Ela chama a autora da trama, Gloria Perez, de visionária.
Para Maria Clara, a inclusão dos profissionais trans precisa de mais gente pensando como Gloria Perez. "Deem oportunidade para os atores que são transexuais fazerem papéis diversos. Isso é que vai ser um grande avanço. Trans fazer papel de trans é um grande apartheid artístico e cultural", fala a atriz.
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Selinho de Pablo (Rafael Infante) e Willian (Diego Montez) não teve alarde em Bom Sucesso
Herbet Castro, ator, criador de conteúdo e um dos responsáveis pelo Canal Das Bee no Youtube, vê a questão da censura de beijos e a forma como as relações homoafetivas são tratadas como cenário positivo de qualquer maneira. "Por mais que, infelizmente, a gente não consiga trazer representatividade de fato, as poucas representações já trazem debate para dentro da casa das pessoas", declara.
Ele cita como o melhor exemplo de abordagem a novela das sete da Globo, Bom Sucesso. Castro gosta da condução da personagem trans, Michele (Gabrielle Joie), e do casal Pablo (Rafael Infante) e Willian (Diego Montez). "O relacionamento deles cresceu bastante, e eles tiveram um beijo muito natural, o que é positivo", cita.
Autor de A Hollywood Brasileira - Panorama da Telenovela no Brasil e da coleção Grandes Novelas, Mauro Alencar aponta que desde os anos 1970 a diversidade sexual está presente nas novelas. Ele lembra de inúmeros personagens ao longo das últimas décadas que fizeram sucesso e conclui que os folhetins estão acompanhando o desenrolar social.
"Deste modo, estão absorvendo a incorporação de novos comportamentos desvelados pelo tempo. Porque quanto mais atuante estiverem os diversos gêneros sexuais, mais e melhor serão representados na produção cultural", comenta o especialista, que é doutor em Teledramaturgia Brasileira e Latino-Americana.
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